Nhe’éry, plantas e literatura

A pandemia de Covid-19 fez milhões de vítimas, fechando fronteiras, expondo contradições e mudando sociabilidades. O vírus colocou em evidência os problemas e dilemas atuais da humanidade, a começar pela desigualdade socioeconômica e pela destruição acelerada do meio ambiente. Ganha força, assim, a reflexão sobre outras maneiras de estar no mundo. Seria impossível, e imprudente, minimizar a imensa tragédia vivida, desejando neste momento apenas uma volta ao “normal” – que foi uma das causas do problema. É preciso urgentemente imaginar outras formas de vida, sem a centralidade no “humano”, preparando o terreno para evitar o agravamento da crise climática na qual o planeta já vive.

A Flip – Festa Literária Internacional de Paraty – coloca-se como uma das plataformas possíveis de lançamento imaginativo neste momento. Ao longo dos anos, a Festa se estabeleceu como um dos principais encontros literários mundiais, local de reunião de multidões criativas de todas as origens. A Flip floresceu em um município que tem parte significativa de seu território ocupada por áreas de proteção socioambiental, em região reconhecida como Patrimônio Mundial Misto da Humanidade pela Unesco, título que por si só instiga a obrigação de nunca separar cultura e natureza.

É a partir dessa perspectiva que a Flip se transforma em laboratório e que busca outras expressões, linguagens, perspectivas e mundos. Olhando a partir de Paraty – sua cidade berço, lugar de encontros das águas com a terra –, buscamos na floresta a inspiração para a Festa deste ano: a diversidade, a colaboração em vez da competição, a capacidade regenerativa, a rede de comunicação estabelecida no ar e na terra entre as raízes das árvores e as hifas dos fungos, as alianças formadas por águas, pedras, plantas, ventos, insetos, pássaros e todos os viventes. Na pandemia, a humanidade reduziu sua mobilidade e experimentou temporalidade menos frenética, que são características mais associadas ao reino vegetal. Chegou a hora de pensar e aprender com as plantas.

Nhe’éry (pronuncia-se nheeri) é como o povo Guarani chama a Mata Atlântica, uma denominação que revela a pluriversalidade da floresta. Como explica o cineasta e liderança do povo Guarani Mbya, Carlos Papá, Nhe’éry quer dizer “onde as almas se banham”. Além disso, Nhe’éry também conduz mensagens através de fios de palavras.

Com esses fios de palavras, enlaçaremos a literatura, essencial para se pensar o mundo e as relações entre humanos e não humanos. A grande importância das plantas nas obras literárias precisa ser destacada: os buritis de Guimarães Rosa, o Jardim Botânico e as flores de Clarice Lispector, as árvores de Fernando Pessoa, as folhas de Mãe Stella de Oxóssi, a bananeira de Bashô, as palmeiras e matas de Amos Tutuola, o herbário de Emily Dickinson, a polinização cruzada de Waly Salomão, o planeta-floresta de Ursula K. Le Guin, “a floresta e a escola” de Oswald de Andrade, seguindo-se novos fios de palavras de ficcionistas e poetas da contemporaneidade. O texto literário, sob forma de narrativa, poesia ou drama, em registro oral ou escrito, tem dado uma contribuição fundamental para o respeito e a valorização das diferentes formas de vida.

Por esse motivo, a Flip, em sua 19ª edição, trabalha pela primeira vez com um coletivo de curadores, uma floresta curatorial.

Floresta Curatorial

Hermano Vianna, antropólogo de formação, e misturador geral de informações, coordena o trabalho deste coletivo curatorial integrado por Anna Dantes, colaboradora da Escola Viva Huni Kuin há mais de dez anos e uma das fundadoras do Selvagem – Ciclo de estudos sobre a vida; Evando Nascimento, escritor e filósofo, pioneiro na reflexão sobre literatura e plantas no Brasil; João Paulo Lima Barreto, antropólogo do povo Tukano, do Alto Rio Negro, fundador do Centro de Medicina Indígena em Manaus; e Pedro Meira Monteiro, professor da Princeton University e um dos fundadores da oficina Poéticas Amazônicas, no Brazil LAB da Universidade.

Hermano Vianna

Anna Dantes

Evando Nascimento

João Paulo Lima Barreto

Pedro Meira Monteiro

Com datas marcadas entre 27 de novembro e 5 de dezembro, a Flip quer atuar como um laboratório de aprendizagem dos ensinamentos a partir de Nhe’éry. Buscaremos abrir espaço para refletir sobre as questões da contemporaneidade e a superação de suas crises do ponto de vista artístico, semântico, cognitivo, ambiental, político e socioeconômico. Nesse sentido, a programação vai dialogar com criadores, pensadores e conhecedores que têm se voltado para ancestralidades e outros modelos de organização social e visões diferentes do conhecimento.

Na programação geral, as mesas e intervenções videográficas buscarão um formato híbrido, sem presença de público, em um momento ainda delicado da pandemia de Covid-19. Tudo em caráter laboratorial, tudo em construção, tudo na base de experimentações intelectivas e sensoriais. Tudo em busca de novos caminhos que nos conduzam a um mundo mais justo, igualitário, sustentável e criativo. Será então uma Flip em defesa da arte, da vegetação que protege o planeta e, sobretudo, da vida em suas múltiplas configurações.