Num livro de 2017, En Compagnie des Hommes [Na companhia dos homens], Véronique Tadjo vê a epidemia de ebola se alastrando pela África. Lá pelas tantas, percebemos que um dos narradores é um enorme baobá, que se queixa da burrice humana e confidencia que as árvores adoram ver-se como guardiãs dos rios e dos mares: “nós ousamos crer que falamos com a água que corre, que dança, que canta”.
O universo inteiro se move em torno das árvores, que acolhem um mundo além delas mesmas: pássaros, insetos, líquen, tudo vive ao seu redor, enquanto elas fazem fotossíntese e respiram às avessas, soltando oxigênio na atmosfera. Suas copas tocam o céu e oferecem ao mundo uma sombra refrescante. Bem observadas as coisas, as árvores são responsáveis por aquilo que elas sequer podem enxergar. Mas ao perceberem que não estão sozinhas, elas nos avisam, por meio do baobá, que sua permanência é a permanência de todos.
Desde pelo menos a década passada, há um boom de interesse, tanto na filosofia quanto nas artes, pelo caráter coletivista das plantas. Fala-se de uma “virada vegetal”, que nos convidaria a pensar como elas, colocar-nos em seu lugar. Sem olhos, ouvidos, membros ou órgãos, as plantas percebem o mundo como um corpo “não espacial”, “fluido onde nada pode estar separado de nada mais”, como sugere Emanuele Coccia.
Monica Gagliano, que dirige o Laboratório de Inteligência Biológica de uma universidade australiana e trabalhou no Laboratório Internacional de Neurobiologia Vegetal da Universidade de Florença, dirigido por Stefano Mancuso, levou a sério a ideia das plantas-narradoras. Brincando com o título célebre de Nietzsche, escreveu Thus Spoke the Plant [Assim falou a planta], onde nos lembra que, desde Sócrates, o assim chamado mundo “ocidental” esqueceu de dar ouvidos aos vegetais.
Entretanto, como ensina João Paulo Lima Barreto a partir do “conhecimento-prático” dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro, o próprio corpo humano se constitui de muitos elementos, alguns deles “imateriais”, e muitos deles ligados ao mundo vegetal. A luz, a floresta, a terra, a água, os animais, o ar e o próprio humano compõem o corpo, cujo equilíbrio depende da coexistência bem-regulada de elementos díspares e distantes entre si. Não estamos longe, aqui, da imaginação do baobá de Véronique Tadjo, para quem as árvores tocam, com sua existência, o mundo inteiro. Tampouco nos distanciamos daqueles “fios de palavras” que compõem a Nhe’éry, esse ser da floresta tão difícil de traduzir, ao menos enquanto seguirmos usando um vocabulário que zelosamente aparta o humano do não humano.
Seja como for, o novo milênio expõe a encruzilhada climática e existencial em que todos estamos—árvores, coisas, animais—e parece exigir uma sensibilidade aberta a formas de comunicação que se dão para muito além do livro. Ao valorizar tanto a conservação quanto a transformação, novos saberes se aproximam de certas cosmogonias indígenas que rejeitam a noção de que o mundo foi feito exclusivamente para que o ser humano o habitasse.
Segundo essas concepções, o reizinho mandão que é o ser humano já não poderia mais se comportar como centro do universo. Nem mesmo o pensamento seria exclusivamente humano. Para dizê-lo sem meias palavras: se a ideia da conquista da natureza continuar vencendo, o que chamamos de “natureza” vai logo mostrar o fim do nosso tolo sonho de domínio. Aliás, é sintomático que, neste momento, o desejo expansionista avance sobre o espaço sideral, talvez com a intuição de que a Terra já esteja no seu limite e possa ser abandonada como um lixo cósmico, como bem nota Ailton Krenak. Mas até lá, enquanto houver sábias e sábios indígenas pensando e resistindo, convém ampliar o conhecimento de ideias que possam nos ajudar a adiar o fim do mundo.
Não é possível continuar desconsiderando os saberes e as sensibilidades que advogam sermos parte de algo maior. Nossa permanência depende daquilo que podemos não enxergar, mas que também nos compõe, saibamos ou não. O ser individual não existe nem se sustenta sozinho. Tal premissa é simples, mas tem consequências profundas.
Quando o best-seller de Peter Wohlleben, A vida secreta das árvores, foi lançado em 2015, o mundo já enfrentava a crise climática que, a seu modo, a autocracia e a desigualdade vêm acelerando. Afinal, não há nada menos democrático do que um desenvolvimento que atropela o meio-ambiente e cria zonas de pobreza crescente. Em seu livro, Wohlleben enfrenta essa questão a partir de uma lição dada pela própria floresta. Mas, para compreender tal lição, foi preciso observá-la, ou, como no caso de Tadjo, Gagliano e os sábios indígenas, foi preciso ouvi-la.
Wohlleben trabalhou por anos para a indústria de madeira, manejando florestas no oeste da Alemanha. A certa altura, começou a perceber que as árvores se relacionavam, o que mudou completamente sua perspectiva sobre a mata: “quando você sabe que as árvores sentem dor, têm memória, vivem com seus familiares, não consegue simplesmente cortá-las e matá-las com máquinas”.
É fascinante o relato de como descobriu os sentimentos, as relações e mesmo a memória das plantas. Mas uma coisa em especial me chamou a atenção no livro de Wohlleben. Num capítulo intitulado “Sozialamt” no original (traduzido para o inglês como “social security” e para o português como “serviço social”, embora uma tradução mais adequada seria provavelmente “previdência social”), um verdadeiro sistema de defesa da coletividade se arma entre as árvores.
A interconexão das raízes e a sinergia entre os vegetais, já investigada por Suzanne Simard na década de 1990—e que geraria a ideia da wood wide web, estampada pela revista Nature em 1997—abre a possibilidade de se descrever a floresta a partir de um vocabulário que ganhou sentido sobretudo no pós-guerra, quando a reconstrução de uma Europa em frangalhos exigiu, da imaginação, a elaboração de uma ideia complexa de seguridade social.
É claro que a noção de bem-estar social, bem como a agência de seguridade social (Sozialamt), datam de antes da Segunda Guerra. Mas é no marco da social-democracia europeia, já no contexto da Guerra Fria, que se expande o conceito de welfare state. Na própria Alemanha, de um lado e de outro do muro, a possibilidade de cuidar coletivamente da coletividade gerava uma expectativa de futuro, que se pode interpretar como uma reação ao estrago e ao horror experimentados durante a guerra. Fosse no mundo socialista ou no universo das democracias liberais europeias, a reconstrução dos liames da coletividade era uma necessidade pungente, e é sob a marca dessa pungência que Wohlleben imagina o mundo a partir da floresta.
Para quem supõe que as plantas possam ser grandes narradoras, uma questão se impõe: haveria consciência na maneira como as árvores se comunicam? A pergunta é capciosa, porque a ideia de “consciência” pressupõe uma reflexão que separa o sujeito que pensa do momento observado por ele. Categorias como “sujeito”, aliás, servem pouco ou nada para entender a virada vegetal. Talvez seja melhor ficar com a imagem poética de Emanuele Coccia, para quem nós “somos os objetos da jardinagem cósmica das plantas”, de forma que “as plantas não são a paisagem, elas são os primeiros paisagistas”. Elas nos assistem e assistem a nós, ao mesmo tempo. No fundo, não somos mais que uma consequência tardia delas. De fato, não estaríamos aqui não fosse por elas, e não estaremos aqui por muito tempo se continuarmos a maltratá-las.
É duro para o ser humano lidar com a ideia de que ele pode ser mero objeto de um universo que o transcende e que ele não domina. A virada vegetal, contudo, é um antídoto certeiro para o pesadelo fáustico de quem se supõe capaz de dominar a matéria e o próprio tempo. Curvar-se diante da sabedoria do mundo material (ou “não-humano”) e dos mistérios do tempo vegetal é uma atitude efetivamente moderna que mal começamos a descobrir.
É curioso que Wohlleben (que tem o “buen vivir” entranhado no próprio nome: Wohl + Leben) se pergunte, logo no início de seu livro, pela gratuidade dos encontros subterrâneos das árvores. Sua dúvida é se as raízes crescem de forma aleatória, conectando-se casualmente ao encontrar outras da mesma espécie. Se acreditarmos no simples acaso, as árvores não teriam outra escolha a não ser trocar nutrientes, compondo uma comunidade de forma puramente acidental.
No entanto, diz ele, a natureza não funciona de forma tão simples, nem tão casual: as árvores conhecem as diferenças entre suas próprias raízes e as de outras espécies. Mas então por que seriam tão “sociais”? Por que estendem a mão até mesmo a suas concorrentes? Por que trocar nutrientes com árvores de outra espécie, por exemplo?
Em tempos de xenofobia e nacionalismo exacerbado, a pergunta é menos ingênua do que pode parecer. A resposta de Wohlleben talvez esteja no título de seu primeiro capítulo: “Amizades”. Há uma rede de sustentação na floresta, calcada no reconhecimento das espécies mais diversas. Digamos que quem tem um amigo tem tudo, quase que literalmente. O ponto sensível para explicar esse universo solidário é que a árvore não é a floresta. Algo maior transcende a árvore, sendo impossível imaginá-la individualmente. Tal seria o limite benfazejo da virada vegetal: não há mais como sustentar visões de mundo ou cosmologias baseadas no indivíduo.
Ao relacionar a virada vegetal ao contexto político global, Rob Nixon recorda a sentença cortante de The Overstory, de Richard Powers: “There are no individuals. There aren’t even separate species. Everything in the forest is the forest.” [Não há indivíduos. Não há nem mesmo espécies separadas. Tudo na floresta é a floresta.] E vai ainda mais longe, ao recordar que o credo neoliberal se condensa no célebre pronunciamento de Margaret Thatcher: “there is no such thing as society. There are individual men and women and there are families” [não há tal coisa como a sociedade. Há homens e mulheres individuais e há famílias].
A noção de que não há nada além do núcleo individual e familiar, e o correlato veredito de Thatcher sobre a morte da sociedade, datam de 1987, menos de um ano antes, lembra Nixon, de que James Hansen, da NASA, lançasse o grande alerta sobre o aquecimento global e postulasse a necessidade de agir coletiva e multilateralmente para freá-lo. O que veio depois disso, como sabemos, é a nossa triste história até aqui…
A comunicação dentro da floresta é um dos grandes temas de A vida secreta das árvores, e de vários outros livros escritos nos últimos anos. Na obra de Wohlleben, o tópico é trabalhado com muita imaginação narrativa. Fiquemos aqui apenas com o capítulo da “previdência social”. Ele se inicia com a observação de que, no caso do manejo florestal para extração de madeira, os engenheiros costumam determinar o corte das árvores competidoras, deixando apenas os indivíduos sadios, que crescerão sem empecilho algum. Mas isso só funciona porque as árvores escolhidas para viver serão cortadas ainda jovens. Já uma floresta deixada a si mesma não tem interesse algum em perder os membros mais fracos, porque os vazios que seriam então criados podem arruinar os delicados microclimas em que elas se encontram, destruindo todas as árvores, no fim das contas.
Uma pesquisa recente, lembra o autor, levou à incrível descoberta de que, numa floresta de faias, elas conseguem equalizar o volume de fotossíntese que cada uma faz, o que se explica porque as árvores mais fracas e menos dotadas de boas condições de terreno, por exemplo, são ajudadas por aquelas mais fortes e mais sortudas. A equalização se dá por uma troca subterrânea de nutrientes “segundo a qual quem tem muito cede e quem tem pouco recebe ajuda”. Isso não seria possível sem os fungos, cuja rede funciona como “uma gigantesca redistribuidora de energia”, o que lembra “um trabalho de assistência social tentando evitar que o abismo para os indivíduos desfavorecidos da sociedade cresça”.
Quando artificialmente espaçadas, as árvores continuam mandando mensagens a suas vizinhas, mas o fazem “em vão, pois restam apenas os tocos de seus troncos”. O problema então é que “cada uma passa a cuidar apenas de si, e surgem grandes diferenças de produtividade entre os membros”. Algumas árvores realizam tanta fotossíntese que transbordam açúcar, mas não são capazes de viver mais tempo, “pois a qualidade da árvore depende da mata que a rodeia”.
Entretanto, paira uma dúvida: o fato de que algumas árvores ficam para trás e morrem, consumidas por fungos e insetos, não seria o resultado da evolução, com a sobrevivência do mais forte? Feita a pergunta, a imagem de que Wohlleben lança mão é muito bonita: ouvindo tal questão, as árvores chacoalham suas copas, todas juntas, em reprovação. É como se dissessem, em uníssono, que “o bem-estar do grupo depende da comunidade, e, quando os membros supostamente fracos desaparecem, os outros também saem perdendo”. Se apostasse na força do indivíduo isolado, a floresta ficaria “mais exposta e o sol quente e as tempestades de vento” alcançariam o solo, “interferindo na umidade e na temperatura ideal”. O destino de um é o destino de todos.
O capítulo se encerra com uma espécie de parábola. Wohlleben conta que, no começo de sua carreira, ele fazia o “anelamento” de faias mais jovens, isto é, retirava-lhes parte do anel para que elas morressem e dessem lugar às árvores mais fortes. Para sua surpresa, muitas das árvores feridas pelo anelamento continuavam vivas. Foi quando ele se deu conta de que, usando “a rede subterrânea”, elas “assumiram o fornecimento interrompido das raízes e possibilitaram a sobrevivência de suas companheiras”. A comunidade das árvores é forte, e o “antigo ditado que diz que ‘a corrente tem a força de seu elo mais fraco’ poderia muito bem ter sido criado pelas árvores”. E como as árvores sabem disso “por intuição”, elas “ajudam umas às outras de maneira incondicional”.
A ajuda “incondicional” não é simples imperativo moral, mas sim uma forma de sabedoria. É disso que fala Uyra Sodoma, numa conversa com Emicida repleta de saber vegetal: “dentro de uma floresta, assim como na comunidade, as casas estão muito próximas, como as árvores”. No chão da mata “as raízes se conectam e emitem sinais de proteção”, exatamente como acontece entre as pequenas residências nas quebradas populosas e criativas das cidades. Fascinado, Emicida responde a Uyra dizendo que ouvir é a alma do negócio: “ouvir o amigo, ouvir o planeta, ouvir uma árvore que vive tanto tempo e vê tanta coisa; imagina o quanto de história ela pode contar”.
Eis que nos vemos de volta às árvores que narram a história e que resistem na adversidade, apostando alto na diversidade, colocando-se não contra o indivíduo, mas a favor de todos os indivíduos. A meritocracia vegetal (e apenas ela?) seria o fim do planeta. A continuidade do que chamamos de mundo depende de um movimento que não é de abdicação do poder do indivíduo. Trata-se, diferentemente, de sua correta utilização em prol de um espaço comum e de outros indivíduos que podemos desconhecer, mas que no fundo nos sustentam. Indivíduos, aliás, não apenas de nossa própria espécie. Tudo ocorre num imenso jardim, plural e complexo no seu funcionamento.
Emanuele Coccia lembra que, no jardim suspenso chamado Terra, o ser humano não é o único a influenciar a vida de outras espécies. Essas “outras” espécies também definem, à sua maneira, o destino dos seres viventes mais diversos, numa cadeia de relações potencialmente infinita. O que chamamos de evolução, portanto, nada mais é “que um tipo de agricultura interespecífica generalizada, um intercultivo cósmico—que não visa necessariamente ao útil.”
A vida não é útil. Nem casual. Já é mais que chegada a hora de trabalhar e de contemplar esse grande e delicado jardim voador povoado por jardineiros de todas as espécies. Enquanto nos preparamos para o baile cósmico em torno das plantas, convém emprestar os ouvidos ao poeta (José Miguel Wisnik), para quem a Terra dança entre os astros mudos, “abraçando em círculos o centro que lhe escapa”, “sem um chão que não seja o seu/ sem um chão que não seja o céu”.
Pedro Meira Monteiro é professor titular de literatura e cultura brasileira na Princeton University. Diretor do Departamento de Espanhol e Português, é filiado ao Programa de Estudos Latino-americanos e ao Brazil LAB. É colaborador de revistas como piauí e serrote, e autor, entre outros, de Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda (2012, Prêmio ABL de Ensaio 2013), Conta-gotas (2016), A queda do aventureiro (2021) e Nós somos muitas: ensaios sobre crise, cultura e esperança (2022), em parceria com Rogério Barbosa, Flora Thomson-DeVeaux e Arto Lindsay.