Cidades e florestas

A julgar pelas roupas dos jovens reunidos no salão, a cena poderia se passar em qualquer bar do Rio de Janeiro ou de São Paulo das décadas de 1960 e 1970. Contudo, a parede de alvenaria de pedra, típica de construções do período colonial brasileiro, entrega a localização. Trata-se de Paraty. Realizado em 1968, o documentário Vila Nossa Senhora dos Remédios, dirigido por Pedro Rovai e narrado e roteirizado pelo poeta paratiense José Kleber, revela um momento único da cidade, quando ela começou a se abrir aos visitantes – genericamente chamados de “paulistas” –, que chegavam dia após dia depois de horas de deslocamentos por mar e estradas praticamente inexistentes.

 

É difícil refletir sobre Paraty sem lembrar desse período. Afluíam para lá, então, diretores do Cinema Novo, atores, escritores, pintores, artistas das mais variadas linguagens e mais um sem-número de jovens entusiastas da cidade. Paraty atraía pelo pitoresco das edificações, pela preservação de suas festas e pelo modo de vida, mas principalmente porque estava aberta às trocas. O lapso de tempo entre meados do século 19 e os anos 1970 – quando foi inaugurada a BR-101, que a ligou às capitais São Paulo e Rio de Janeiro – preservou redes de sociabilidade que sempre existiram por ali. Uma inteligência descentralizada que manteve coesos modos de vida em todo o território, mas que também soube acolher e se integrar aos visitantes.

 

É uma aparente contradição. Ao mesmo tempo que preservou, que consolidou regras sociais e tradições, Paraty soube se abrir através de membranas. Por exemplo, os bares Valhacouto, retratado no filme Vila Nossa Senhora dos Remédios, e o Abel, que tinha uma emblemática pintura de Yoshiya Takaoka na parede, serviram como membranas naqueles anos. Permeáveis e resistentes, essas membranas garantiram uma troca espontânea, descentralizada, que não passava por intermediários de qualquer tipo. Elas permitiram intercâmbios sem deixar de proteger as sutilezas e as especificidades de Paraty.

 

O historiador e sociólogo Richard Sennett tem defendido a noção de cidade aberta em oposição à cidade fechada. Uma propõe o encontro, a troca, a dissonância. É descentralizada por essência. A outra busca circunscrever a circulação a ambientes controlados, a troca a situações previstas, a dissonância à pasteurização. É centralizadora por princípio: realiza-se “no crescimento suburbano para as classes médias, com a substituição das ruas principais por shopping centers monofuncionais, por condomínios fechados e escolas e hospitais construídos como campi isolados”, diz Sennett.

 

Sistemas abertos, como deveriam ser pensadas as cidades do futuro, acolhem as diferenças, as dissonâncias. O território, porém, não deve ficar escancarado, como proporia uma lógica neoliberal. A cidade do futuro, nesse sentido, deve se inspirar justamente no tipo de troca que aconteceu em Paraty, no período exatamente anterior à BR-101: em que o global, o exterior, entrava em contato com o local, mas sem prejuízos para este. Isso começou a mudar gradualmente a partir da inauguração da estrada, quando Paraty ficou exposta ao turismo de massa, da lógica das casas de veraneio, que consomem muito – abertura de novos bairros, segurança, infraestrutura etc. – e deixam pouco ou quase nada para a cidade.

 

Algumas características, contudo, não se perdem tão facilmente. Em Paraty, o território como um todo permanece vibrante social e culturalmente. A juventude paratiense de hoje não deixa nunca de se interessar por suas próprias raízes, e as festas, como a Festa Literária Internacional de Paraty – Flip, reavivam a ideia de cidade aberta, defendida por Sennett. Nesse sentido, até agora Paraty resistiu a uma lógica de ocupação do território que poderia ter sido mortal para seu próprio espírito. Mas é inegável que o momento para essa pequena cidade litorânea e para o mundo é de inflexão. A pandemia da Covid-19 deixou mais evidente do que nunca os dilemas da contemporaneidade: a degradação ambiental, a desigualdade social, o esgotamento de um modo de se olhar para o mundo estritamente ocidental e racionalista.

 

A saída para esse impasse talvez esteja no mais importante sistema aberto do mundo, que, aliás, representa a maior parte do território da cidade de Paraty: a floresta. Esta é a hora de deixar a clássica divisão entre cultura e natureza para trás. São os seres das florestas, os humanos e os não humanos, que devem ser um norte para a cidade do futuro. Quantos enganos não teriam sido evitados se o conhecimento dos povos originários do território brasileiro não tivesse sido desprezado? Quantas soluções inovadoras não teriam surgido se as plantas, com seu sistema descentralizado, sem qualquer órgão que se assemelhe a um cérebro central, tivessem sido mais estudadas?

 

Cidades pequenas, médias e grandes hoje só são possíveis da maneira como são se elas consumirem uma quantidade enorme de recursos que vêm, obrigatoriamente, de fora de suas fronteiras muito bem delimitadas. As manchas urbanas são verdadeiros vampiros a drenar recursos e desperdiçar conhecimentos que não passam por uma lógica de consumo. Isso ficou ainda mais evidente durante a pandemia: bilhões de pessoas no mundo todo confinadas em apartamentos, completamente desconectadas daquilo que é essencial para a vida. Em Paraty, em suas festas, nas florestas que circundam a cidade, na rede de comunicação que há entre plantas, pessoas e animais, existe uma fonte de esperança e inspiração.

 

Como aponta Sennett, “Para a ciência, sistemas abertos são companheiros conhecidos. Eventos fortuitos, formas mutantes, elementos que não podem ser homogeneizados ou não são intercambiáveis – todos esses fenômenos distintos da matemática e/ou do mundo natural podem, contudo, formar um padrão, e é a esse conjunto que nos referimos como sendo um sistema aberto”. A rede de comunicação estabelecida entre as árvores através de suas raízes, algo que garante a vida e o equilíbrio entre todos os seres da floresta, é o sistema aberto por excelência. É nela que as trocas ganham a dimensão mais potente possível, equilibrando toda a vida que há.

 

Existem caminhos seguros, claros, para serem seguidos a partir de agora? Não. Mas hoje se faz necessário olhar para o lado, para o que foi ignorado até agora. O modelo tradicional ocidental já não dá mais conta. Daí vem a necessidade de se aprender com as florestas e seus seres, de se olhar para o passado e buscar lógicas como a de Paraty entre os anos 1960 e 1970, quando foi possível estabelecer trocas saudáveis através de membranas permeáveis, flexíveis. A cidade do futuro, para lembrar Sennett mais uma vez, busca não apenas a solução dos problemas, mas acolher e aprender com os problemas. Para isso, é necessário também um novo olhar sobre todo o conhecimento e a arte.

 

Mauro Munhoz é arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e mestre pela mesma escola, na área de Estruturas Ambientais Urbanas. Sua dissertação – Revitalização urbana sustentável de Paraty a partir de seus espaços públicos de borda d’água – levou à fundação da Associação Casa Azul, atuante nas áreas de arquitetura, urbanismo, educação e cultura. É diretor artístico do Programa Principal da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), da qual foi um dos fundadores. Em 2012, ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), na categoria Urbanidades, pela requalificação da praça da Matriz de Paraty. Assinou sua primeira obra pública em 2008: o Museu do Futebol, em São Paulo, que lhe valeu o prêmio do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) na categoria Restauro e Requalificação.

 

Voltar ao índice