A publicação do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, em 1924, veio acentuar o que poderia haver de “virada vegetal” nas primeiras atividades do modernismo brasileiro. Os verdes da Favela. A dominação política das selvas selvagens. Os cipós maliciosos da sabedoria. A mata resumida das gaiolas. A floresta e a escola. A vegetação. Riqueza vegetal. Pau-Brasil. Isso tudo entre a saudade dos pajés e os campos de aviação militar. E claro: não podemos deixar de citar as questões cambiais, a exportação, o Brasil profiteur. Afinal, todo mundo sabe que, para a Semana de 22 acontecer, o aluguel do Teatro Municipal de São Paulo foi pago com o dinheiro dos barões do café. Ou, de acordo com outra versão de nosso mito de origem modernista, esses mesmos barões do café (ou pessoas de suas famílias ou confianças) conseguiram o Teatro Municipal de graça.
Mesmo a escolha do nome desse Manifesto se justificava por preocupações com o comércio internacional. Oswald de Andrade, que conhecia bem as flutuações “encalacradas” dos preços – em libras ou contos de réis – das sacas do agronegócio (agro que ainda não era pop), assim explicava sua defesa das “divisas nacionais”: “Tratava-se de um toque de reunir contra a poesia de importação e por isso eu apelava para o totem vegetal do pau-de-tinta, que fora nosso primeiro produto exportado”. Homenagem de vanguarda para um país “descoberto” por necessidade europeia de consumo de especiarias e que continuou sua história econômica dependente de outras plantas: cana, café e hoje soja transgênica.
Certamente, Oswald também pensava, ao lado do totem Pau-Brasil, no autor de um “livro tabu”: “Canaã, que ninguém havia lido e todos admiravam”. Pena que não leram. A leitura provavelmente traria complexidade para quem, de Graça Aranha (a “Aranha sem graça” trollada na Revista de Antropofagia), só conhecia o escândalo do famoso discurso nada ecológico que pretendia defender o modernismo na Academia Brasileira de Letras de 1924: “Somos os lyricos da tristeza, porque ainda não vencemos a natureza”.
Em Canaã já aparecia – duas décadas antes de 1922 – visão bem diferente da relação entre seres humanos e natureza, com muitas das teses mais inovadoras da “virada vegetal”, da filosofia e da botânica que fazem sucesso hoje: onde Darwin – simplificando muito – só via competição, os novos estudos sobre as florestas e os jardins revelam vários tipos de colaborações, comunicações, alianças. O “livro tabu” de Graça Aranha é construído a partir de longos diálogos entre Milkau e Lentz, dois imigrantes alemães com visões de mundo divergentes, que percorrem as matas do estado do Espírito Santo com deslumbramento e assombro.
Difícil selecionar trechos, entre tantos muito eloquentes, para exemplificar as duas posições. Corro o risco. Aqui fala Lentz, também advogado, do desaparecimento das “raças inferiores”:
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Esta mata que atravessamos é o fruto da luta, a vitória do forte. Cem combates travou cada árvore destas para chegar à sua esplêndida florescência; a sua história é a derrota de muitas espécies, a beleza de cada uma é o preço da morte de muitas coisas que desde o primeiro contato da semente poderosa foram destruídas […] O ipê é uma glória de luz; o sol queima-lhe as folhas e ele é o espelho do sol. Para chegar àquele esplendor de cor, de luz, de expansão carnal, quanto não matou o belo ipê… A beleza é assassina e por isso os homens a adoram mais…
Milkau responde convicto, apresentando sua crença no “amor universal” como motor da história:
A natureza inteira, o conjunto de seres, de coisas e homens, as múltiplas e infinitas formas da matéria no cosmos, tudo eu vejo como um só, imenso todo, sustentado em suas íntimas moléculas por uma coesão de forças, uma recíproca e incessante permuta, num sistema de compensação, de liga eterna, que faz a trama e o princípio vital do mundo orgânico. E tudo concorre para tudo. Sol, astro, terra, inseto, planta, peixe, fera, pássaro, homem, formam a cooperação da vida sobre o planeta.
A narração de Canaã não esconde sua simpatia pelas ideias de Milkau. Aqui resumo um enorme parágrafo:
A floresta tropical é o esplendor da força na desordem. Árvores de todos os tamanhos e de todas as feições. Árvores, umas largas, traçando um raio de sombra para acampar um esquadrão, estas de tronco pejado que cinco homens unidos não abarcariam, aquelas tão leves e esguias erguendo-se para espiar o céu. Há seiva para tudo, força para a expansão da maior beleza de cada uma. Toda aquela vasta flora traduz a antiguidade e a vida. Não se sente nela sombra de um sacrifício que seria o triunfo e o prêmio da morte. Dentro, as parasitas se enroscam pelos velhos troncos, com a graça de um adorno e de uma carícia. E tudo se ergue, e tudo se expande sobre a terra, compondo um conjunto brutal, enorme, no alto a cabeleira densa das árvores e embaixo pela rede das fortes e indomáveis raízes; todo ele se entrelaça, enroscando-se numa grande solidariedade orgânica e viva…
Traduzidas para conceitos, imagens e exemplos de hoje, quando vivemos uma modernidade já envelhecida, as palavras anteriores de Milkau e da narração de Canaã poderiam resultar nas afirmações de Stefano Mancuso no livro Revolução das plantas, um dos guias principais da atual “virada vegetal”:
[as plantas] são a representação viva de como a solidez e a flexibilidade podem ser combinadas. Sua composição modular é a quintessência da modernidade: uma arquitetura cooperativa, distribuída, sem centros de comando […] Assim, para utilizar recursos do meio ambiente, as plantas se valem, entre outras coisas, de uma rede de raízes refinada […] Não é por acaso que a internet, o próprio símbolo da modernidade, é construída na forma de uma rede de raízes.
Dessa maneira, a leitura do livro de Graça Aranha poderia ter dado, para a turma de Oswald de Andrade, um gostinho pós-cibernético e ecológico avant la lettre, incluindo necessária desconfiança diante da pregação que confundia a conquista da liberdade humana com a luta contra os limites que nos teriam sido impostos pela natureza, ou uma concepção de progresso viralizada por futurismos devotos da aceleração possibilitada pelas máquinas e por tudo aquilo que poderia ser considerado, com admiração, artificial. Blaise Cendrars, por exemplo, para quem é dedicado (“por ocasião da descoberta do Brasil”) o livro de poesias Pau-Brasil, chegou, talvez como tática de choque comum naquele momento vanguardista, a escrever um denso elogio da monocultura tratando o café como “entidade metafísica”:
Em menos de cinqüenta anos a monocultura transformou a aparência do mundo, cuja exploração dirige, com habilidade espantosa. […] Sem nenhuma preocupação com a natureza de cada região, ela aclimata tal cultura, prescreve tal planta, transtorna tal economia secular. […] Ela só cultiva, em relação à superabundância vegetal da natureza, um número bem pequeno de espécies cuidadosamente selecionadas. […] E esta monotonia artificial que ele [o ser humano] se esforça por criar, e esta monotonia que invade cada vez mais o mundo, esta monotonia que alguns deploram, esta monotonia é o sinal mais aparente da nossa grandeza. […] Qual foi a vontade que desencadeou isso? Qual a inteligência que dirige esse movimento de expansão? Quem inventou métodos de cultura tão estritos, tão severos? Que olho sensível alinha as fileiras e distribui as massas de vegetação com um sentimento tão perfeito do belo? […] Será obra de um só homem, ou, mais certamente, uma lenta conquista do espírito humano que se cerca de ordem e harmonia na sua luta contra a natureza? […] a monocultura revolucionando o relevo do solo, a fauna e a flora, revolucionou igualmente o coração do homem.
Essas palavras de Blaise Cendrars, escritas em 1927, encontram estranho e pesado eco na conferência de Oswald de Andrade em Bauru, em 1948, mesmo com crítica contra “o boi”, contra “o delírio da devastação imprevidente”, contra “o descaso pelo solo trabalhado e pelo homem trabalhador”:
Verdade é que a transformação da floresta paulista nos cafezais do século passado constituiu o maior esforço agrícola do mundo. […] Pouco antes de 1930, acompanhei como jornalista o presidente Júlio Prestes numa excursão que me fez conhecer Mato Grosso. Foi quando pela primeira vez visitei Bauru e viajei a Noroeste. Lembro-me então do deslumbramento que nos tomava ante a derrubada que geralmente coincidia com a semeadura das cidades nascentes. As casas, a igreja, o juizado de paz levantavam-se sobre os tocos enegrecidos da mata.
“Serei contraditório?” Essa foi pergunta central na vida de Gilberto Freyre, autor de Casa-grande e senzala, livro que Oswald de Andrade, nessa mesma conferência de Bauru, chama de “totêmico”, em contraste com o “tabu” de Canaã, pois “apoia e protege a nacionalidade”. As contradições oswaldianas são também evidentes, e parte poderosa do interesse de suas obras. Mesmo levando isso em consideração, o trecho deslumbrado citado acima talvez denuncie que o totemismo de sua relação com Casa-grande e senzala pode ter atrapalhado a leitura, sobretudo pulando os trechos de pregação bem evidente contra a monocultura. Porém, já sabemos que esse primeiro livro de Gilberto Freyre também pode ser considerado, cada vez mais, tão tabu quanto Canaã, hoje nem admirado nem lido.
Senão, vejamos… O que tem como consequência mais citações neste texto já ocupado por elas… Escreveu Gilberto Freyre: “Nada perturba mais o equilíbrio da Natureza que a monocultura, principalmente quando é de fora a planta que vem dominar a região”. Para o autor, a monocultura acaba com a “espontaneidade” e a “frescura” da Natureza. Paraíso tropical “cousa nenhuma”: “terra de alimentação incerta e vida difícil é que foi o Brasil dos três séculos coloniais. A sombra da monocultura esterilizando tudo”.
Essa crítica vai se tornar ainda mais sistemática em livros posteriores, como Nordeste. Em Sobrados e mucambos, Gilberto Freyre se deleita ao descrever seu tipo ideal de interação humanidade-plantas, bem distante da “monotonia artificial” – com suas fileiras alinhadas em beleza perfeita – celebrada por Blaise Cendrars, indo ao encontro de uma espécie de wuwei que hoje encanta urbanismos mais anarquistas:
O jardim da casa brasileira, conservando a tradição do português foi sempre um jardim sem a rigidez dos franceses ou dos italianos; com um sentido humano, útil, dominando o esthetico. Irregulares, variados, cheios de imprevistos. (Essa variedade parece ter sido aprendida com os chineses: sabe-se que foram os portugueses que introduziram na Europa os jardins chineses).
Tudo misturado: a comida, a farmácia, a perfumaria, a beleza: “Plantas cultivadas sem ser por motivo decorativo nenhum: só por prophylaxia da casa contra o mau olhado: o alecrim e a arruda, por exemplo”; plantas “cultivadas principalmente pelo cheiro bom; pelo ‘aroma hygienico’”; plantas “para se fazer remedio caseiro, chá, suadouro, purgante, refresco, doce de resguardo” e ainda “só pela côr sempre alegre das suas flores – a papoula, por exemplo (que entretanto servia também para dar brilho às botinas pretas dos burgueses)”.
Estamos, nesses jardins freyreanos, de volta ao “esplendor de força na desordem” que Graça Aranha, em Canaã, já enxergava no “tudo concorre para tudo” da floresta tropical. De volta ao cipoal complexo e exuberantemente contraditório das propostas da eclética turma modernista brasileira e suas conexões internacionais. Se radicalizarmos as propostas de Gilberto Freyre, numa “virada vegetal” bem revirada (sob a vibração do Revirão de MD Magno), poderemos chegar na “mestiçagem cósmica” que Emanuele Coccia anuncia no seu livro A vida das plantas (que não por coincidência tem capítulo intitulado “Tudo está em tudo”):
A razão-flor, finalmente, não reconduz o múltiplo da experiência a um eu único, não reduz a diferença de opinião à unicidade de um sujeito; ela multiplica e diferencia os sujeitos, torna as experiências incomparáveis e incompossíveis. A razão não é mais a realidade do idêntico, do imutável, do mesmo; é a força e a estrutura que obriga todas as coisas a se misturarem a seus semelhantes pela via do dessemelhante.
Muitas coisas dessemelhantes mais para misturar, para semear (e nem citei, por exemplo, a flor de vitória-régia que aparece esplendorosa em O turista aprendiz, de Mário de Andrade – e mais importante: não incluí, pois levariam este ensaio-jardim para outros férteis caminhos, citações do exuberante, sofisticado e muito diversificado pensamento dos povos indígenas, há séculos em constante “virada vegetal”, que nosso modernismo pioneiro aparentemente só conhecia através da mediação “branca” de Couto de Magalhães, Koch-Grünberg e cia. limitada). Para que possam conviver por um tempo, germinar. Enxertarem-se umas nas outras, hibridizarem-se em novos pensamentos que não sabemos ainda quais serão. Mestiçagem cósmica. Infinita. Saída possível: seguir outra lição de Gilberto Freyre: melhor não concluir. Missão (folclórica?) deste artigo: apenas deixar estes trechos por aqui, como sementes num jardim bem pouco ordenado…
Um século depois da Semana, dos futurismos mecânicos da Semana (mesmo com a planta florida de Di Cavalcanti na capa de seu programa), desconfiamos do futuro, das crenças em progressos que tanto encantaram quem viveu naquele início de civilização das máquinas e da produção de massas. Nosso olhar vegetal percebe, ou aprendeu forçosamente a perceber, coisas que ninguém ali poderia notar ou prever.
É preciso ter alguma piedade… Por isso, já me arrependo de não ter deixado mais claras as contradições de Oswald de Andrade e Blaise Cendrars. Termino então com mais dois trechos, bem do “ponto de vida” (como prefere Emanuele Coccia) das plantas.
Do Manifesto Antropófago:
Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais.
E por fim, para abrir geral, o poema “Aberturas”, de Blaise Cendrars:
Saídas para o mar
Quedas d’água
Árvores cabeludas musgosas
Folhas pesadas envernizadas reluzentes
Um verniz de sol
Um calor bem esfregado
Resplendor
Nem escuto mais a conversa animada dos meus amigos que repartem entre si as
notícias que trouxe de Paris
Dos dois lados do trem bem perto ou então do outro lado do vale longínquo
A floresta está aqui e me espia e me inquieta e me atrai como a máscara de uma
múmia
Olho
Nem sombra de um olho
Hermano Vianna é mestre e doutor no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ. Publicou os livros O mundo funk carioca e O mistério do samba (traduzido para inglês, italiano, japonês e francês). Fez curadoria para vários festivais como Carlton Artes, Tim Festival, Percpan. Criou os programas de televisão African Pop, Além-Mar, Brasil Legal, Central da Periferia, o site Overmundo (que ganhou o prêmio Golden Nica no festival Ars Electronica), a peça Recital da Onça (com Regina Casé) e o projeto multimídia Música do Brasil. Apresentou o programa Navegador, na Globo News. Já teve coluna semanal no jornal O Globo durante cinco anos; atualmente assina coluna mensal no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo. É cavaleiro da Ordem do Mérito Cultural. Ganhou, entre outros, os prêmios Multicultural Estadão e Trip Transformadores.
Notas
1 Oswald de Andrade. Sexagenário, não, mas sex-appeal-genário. In: Estética e política. Rio de Janeiro: Globo, 1992.
2 Oswald de Andrade. O Modernismo. In: Estética e política, op. cit., p. 191.
3 Graça Aranha. Espírito moderno. São Paulo: Cia. Graphico, Editora Monteiro Lobato, 1925, p. 35.
4 Graça Aranha. Canaã. Rio de Janeiro: Ediouro, p. 32.
5 Id., p. 32.
6 Id., p. 23.
7 Stefano Mancuso. Revolução das plantas. São Paulo: Ubu, 2019, p. 10-11.
8 Blaise Cendrars. ETC…, ETC…(UM LIVRO 100% BRASILEIRO). São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 70-75.
9 Oswald de Andrade. O sentido do interior. In: Estética e política, op. cit., p. 315-16.
10 Id., p. 324.
11 Gilberto Freyre. Casa-grande e senzala. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, p. 34.
12 Id., p. 38.
13 Gilberto Freyre. Sobrados e mucambos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, p. 221.
14 Id., p. 221-22.
15 Emanuele Coccia. A vida das plantas. Florianópolis: Cultura e Barbárie, Desterro, 2018, p. 105-06.
16 Blaise Cendrars. ETC…, ETC… (UM LIVRO 100% BRASILEIRO), op. cit., p. 56.