Por Fernanda Bastos e Milena Britto (curadoras)
“Esse crime, o crime sagrado de ser divergente,
nós o cometeremos sempre”
Patsy, Mara Lobo, King Shelter, Ariel, Pat, Léonie, Pt, Gim, Solange Sohl, Peste. Quantas escritoras se manifestaram em Pagu? Quantos universos a autora criou e expandiu por meio de suas produções? Muitas são as paisagens de dentro e de fora que ela nos mostra com suas múltiplas linguagens, todas trazendo em comum uma contestação incansável diante do mundo rígido. Com seus modos de dizer e desenhar mundos, Pagu desenvolve uma paisagem em que são retratadas diversas mulheres brasileiras: operárias, mães, boêmias, artistas, as que aspiram à liberdade. É transformador olhar o presente por meio das lentes de Pagu.
Se, durante sua trajetória artística, as muitas línguas faladas por Pagu enfrentaram incompreensão e até repulsa, hoje sua produção nos inspira reflexões que ultrapassam os limites da razão e nos convidam a decifrá-la a partir das pistas que sua estética representa como legado. Nascida em 9 de junho de 1910, em São João da Boa Vista (SP), Patrícia Rehder Galvão foi jornalista, dramaturga, poeta, tradutora, cartunista e crítica cultural.
Atuou nos movimentos modernista e feminista, além de ter se dedicado ao ativismo contra o fascismo. Pagu teve destacada atuação na imprensa, tendo participado de publicações como Brás Jornal, Revista da Antropofagia, O homem do povo/A mulher do povo, A plateia, A vanguarda socialista, France-Presse, Suplemento Literário do Jornal Diário de São Paulo, Fanfulla e A tribuna.
A pluralidade de gêneros incorporados no repertório artístico da autora faz dela uma aparição destacada na cena literária brasileira, ainda que tenha falecido em 12 de dezembro de 1962 sem o reconhecimento e a legitimação que muitos de seus contemporâneos usufruíram. Foi prolífica à sua maneira, dedicando-se a muitos projetos que sempre cruzavam linhas e normas estabelecidas, surpreendendo no desenho, cartum, tradução, poesia, prosa, crítica literária, panfleto político, caderno de croquis, correspondência, crônica, diário e performance.
Publicou os romances Parque Industrial, em 1933, com o pseudônimo de Mara Lobo por orientação do partido comunista, considerado o primeiro romance proletário brasileiro, e A Famosa Revista, publicado em 1945 em colaboração com Geraldo Ferraz. Pelo pseudônimo King Shelter, lançou diversos contos policiais, reunidos posteriormente no volume Safra Macabra.
Para o teatro, traduziu grandes autores, muitos deles até então inéditos no Brasil, como James Joyce, Eugène Ionesco, Fernando Arrabal e Octavio Paz. Estão ainda, entre os feitos de Pagu, a entrevista que ela realizou com Sigmund Freud e a introdução da cultura de soja no Brasil, graças ao contato com o imperador chinês Pu-Yu.
O nome Pagu nos leva a lutas estéticas e políticas; nos alerta o quanto pode incomodar a coragem de uma mulher que enfrenta a força plena representada por instituições regulamentadoras de vida, de arte, de liberdades. Essa artista de vida extraordinária teve de pagar um preço alto por ser plenamente o que era em uma época de tantas interdições. Foi encarcerada algumas vezes, uma delas tendo passado 4 anos na prisão, onde enfrentou torturas físicas e psicológicas. Entre os sofrimentos que lhe deixaram profundas cicatrizes, Pagu teve de enfrentar abandono e desprezo de muitos aliados, mas jamais cedeu em seu espírito livre, continuou lutando contra as regras e a ordem cerceadora até o fim, mesmo que algumas vezes de maneira incompreensível para os seus contemporâneos.
É esta mesma luta que perdura, com arte e artimanha, que nos faz olhar para os espaços de encarceramento e imaginar mentes livres, criadoras; que nos faz olhar para a paisagem política do mundo e verificar a força de tantas mulheres sonhando mundos para todos; olhar para a arte de todo lugar e ver o sorriso de uma Pagu que sabia que o país que o Brasil escondia teria ainda de ser revelado.
Profundamente múltipla e engajada, sua obra e sua figura política têm sido abraçadas por grupos sociais que apontam no trabalho da autora um símbolo da luta contra as desigualdades e a estigmatização – em especial das mulheres e das feministas, que percebem na figura de Pagu um emblema da força feminina. É também inspiração para materialistas pelo ativismo e a coragem de denunciar injustiças em períodos de repressão política, e pelos concretistas, que reconhecem o valor estético das inventividades que marcam a produção de vanguarda de Pagu.
Com coragem característica das pioneiras, enfrentou prisões sucessivas, estigmatização e alijamento social, sendo um exemplo inspirador de trabalho pela literatura e a liberdade de expressão no Brasil.