Hoje é 25 de novembro. Entramos no quarto dia de Flip, na etapa final. Mas ainda há muita coisa pela frente. Confira a programação principal da Festa:
Cobertura | A cultura levanta uma cidade
Na primeira parte do dia, na Casa da Cultura, um debate teve, entre os muitos desafios, a tarefa de traduzir a experiência que Paraty tem vivido nestes mais de 20 anos de Flip. Participaram da Mesa “Cultura, Leitura e Espaço Público” Fabiano dos Santos Piúba, Secretário de Formação, Livro e Leitura do Ministério da Cultura; Yke Leon, Superintendente de Leitura e Conhecimento da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa; José Sérgio Barros, Secretário de Cultura de Paraty; e Mauro Munhoz, Diretor Artístico da Flip, representando a Associação Casa Azul. Os palestrantes apresentaram diferentes perspectivas de como o poder público pode desenvolver novos centros culturais em bairros ou até mesmo transformar a realidade de um município e a dinâmica social, envolvendo desde uma grande festa literária até a criação de bibliotecas comunitárias. Para os debatedores, falar do direito à cultura é tratar do direito à cidade.
Mauro Munhoz recordou o primeiro ano da Festa Literária, momento em que quase não havia estrutura para comportá-la nos moldes que ela viria a se tornar. Ao longo dos anos, é evidente o processo de fortalecimento da economia local, a expansão da cidade e a transformação das vidas dos cidadãos. Munhoz destacou: “O direito à cidade é construir um processo coletivo de interceptar um fluxo de transformação da cidade, que nunca para. Ela é um organismo vivo. Só que, dependendo da maneira como nos organizamos, essa transformação pode acolher a dimensão da cultura e da literatura”.
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Cobertura | Mesas 8 e 9
Uma Prisão Mortal e Bate ainda o coração da cidade devastada
O terceiro dia de programação principal começou às 10h. Na Mesa 8: Uma prisão mortal, Joice Berth, Denise Carrascosa e Manuela d’Ávila reuniram-se em uma entusiasmada conversa sobre o papel e o poder dos livros em mediar as violências que historicamente definem as relações no Brasil. Em seguida, às 12h, o escritor cubano Marcial Gala e a poeta e slammer Luiza Romão foram recebidos por Pedro Meira Monteiro para a Mesa 9: Bate ainda o coração da cidade devastada.
Diante de escritores tão prolíficos, o ponto de partida escolhido pelo mediador foi aproximar as obras dos convidados a partir de um dos textos fundadores da tradição literária ocidental. Tanto em Me chama de Cassandra (Biblioteca Azul, 2023), de Gala, quando em Também guardamos pedras aqui (Nós, 2021, vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Livro de Poesia e Melhor Livro do Ano, e semifinalista do Prêmio Oceanos), os escritores voltam-se a narrativas que tangenciam a guerra de Troia, em esforços distintos de compor uma genealogia da violência. “Por que a Ilíada?”, indagou-se Romão, “porque muito desse projeto necropolítico de massacre e devastação começa nesse poema, que funda a Ilíada, e que define as bases daquilo que até hoje a gente entende como política, como arte, como humanidade.”
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Oralitura: a poética da oralidade na educação
A programação do Auditório da Quadra começou quente na sexta-feira com um debate sobre arte, tradições e ensinos. Com o título “Raízes da educação: entre o campo, a montanha e o mar”, o encontro reuniu Gabriela Gibrail, Secretária de Educação de Paraty, o educador Marley Verá Tupã e o poeta Flávio de Araújo. A mediação de Jota Marques, professor na Cidade de Deus, trouxe uma provocação importante sobre aproximar os saberes da rua aos das escolas, derrubando metaforicamente os muros das salas de aula, suas violências e imposições sobre alunos de comunidades afastadas dos centros urbanos, ribeirinhos, quilombolas, caiçaras, indígenas e muitos outros. “Muitas pessoas precisam nos ouvir [os professores], senão parece que somos intelectuais. Não posso falar de literatura com meu filho sem que antes se fale sobre educação”, afirmou Marley Vera Tupã, reforçando a necessidade de interseccionar os dois temas para além dos dias da Festa Literária de Paraty.
Cobertura | Mesa 10
No começo da tarde, a Mesa 10: Terra de fumaça descoberta pela guerra de nossos dias reuniu os poetas brasileiros Bruna Beber e Jorge Augusto, além do autor ucraniano naturalizado estadunidense Ilya Kaminsky. A tarefa de mediar a conversa foi da poeta portuguesa Patrícia Lino. Ao longo de pouco mais de uma hora, o Auditório da Matriz pôde assistir a um debate capaz de lidar com as sutilezas poéticas de cada um dos convidados, entretanto sem perder de vista a dimensão política desses textos.
O autor de República surda (Companhia das Letras, 2023), obra que narra uma guerra fictícia na qual a população civil torna-se incapaz de ouvir os sons do conflito, ressaltou o papel fundamental do silêncio na sua obra. Para Kaminsky, que convive com a surdez desde a infância, “o silêncio é importante, porque às vezes a voz não basta, e as palavras já não dizem o que precisamos fazer. O silêncio nos move, é ele que nos permite falar.”
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Cobertura | Abuso: como enfrentar a cultura do estupro no Brasil
O estupro e o abuso, em suas variadas formas, não são temas de fácil digestão. Há uma razão para tantos canais de mídia, principalmente nas redes sociais, emitirem alertas de gatilho quando essa discussão é revisitada. É dessa maneira que a jornalista Cristina Fibe, autora de João de Deus — O abuso da fé, inicia sua fala. Apenas uma frase, ainda que soando inocente, pode desencadear um sofrimento muito profundo em algumas pessoas devido a situações traumáticas, lembra a autora.
Ali, no debate “Abuso: como enfrentar a cultura do estupro no Brasil”, ninguém está desavisado, mas isso não ameniza a discussão que estava por vir. Ao lado de Cristina está a autora Ana Paula Araújo, que publicou o livro Abuso: A cultura do estupro no Brasil, no qual compila um dossiê com entrevistas de pessoas envolvidas na cultura de estupro: vítimas e familiares, criminosos, psiquiatras e outros especialistas. “Devido a essa cultura, presente em nossas vidas desde muito cedo, crescemos com medo e sem liberdade. Precisamos criar mil estratégias para sobreviver ao risco da violência sexual que está presente em nosso dia a dia”.
Na conversa, elas abordaram as muitas dificuldades que as mulheres que sofreram violências sexuais precisam enfrentar, e uma delas é o estigma. Cristina destaca o esforço na mudança de como caracterizar as pessoas envolvidas nesse contexto. Um exemplo é tratar como sobrevivente e não mais como vítima. “Sobrevivente porque passamos por isso, sobrevivemos e isso não nos define. É importante falar sobre ele [o abusador] e sobre o sistema que permitiu que isso acontecesse.”
Cobertura | Mesas 11 e 12
Contra a mentalidade decadente e As suas nervuras
Ao fim da tarde, às 17h, a Mesa 11: Contra a mentalidade decadente convidou ao Auditório da Matriz e escritorie nigeriane Akwaeke Emezi e a pesquisadora e professora Carla Akotirene. Mediades por Maria Carolina Casati, as obras e as trajetórias des convidades entrelaçaram-se em um debate cujo maior esforço foi dimensionar as muitas possibilidades através das quais a experiência des corpes negres vertem-se em narrativas.
Em seguida, às 19h, a Mesa 12: As suas nervuras, reuniu as tradutoras e escritoras Laura Wittner, Eliane Marques e Lubi Prates que, mediadas por Patrícia Lino, debruçaram-se sobre os ofícios das palavras. Wittner disse que, ao escrever, sente-se roubando algo, apropriando-se de elementos do mundo para conduzir uma caminhada em busca por algo indefinido, enquanto o trabalho de tradução é capaz de oferecer uma espécie de linha guia a uma jornada também instável. Marques, ao descrever o próprio processo, disse não escrever a partir de ideias, mas de pulsões, de ritmos, numa tentativa de “ultrapassar a condição racional”.
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Cobertura | Os sentimentos nos habitam
Nas ruas repletas de pessoas, um público encantador caminha em fila, de mãos dadas, em direção ao Auditório da Santa Rita, ao lado da Igreja, que oferece uma vista poética para a baía. São crianças, estudantes da escola municipal, que estão a caminho para ouvir os autores Roberta Malta e Marcelo Maluf, responsáveis, respectivamente, por Loba (Pequena Zahar, 2023) e O coração que saiu pela boca (Editora Camaleão, 2023). Ambos são autores de livros infantojuvenis e compartilharam suas ideias e inspirações por trás de suas fábulas. Em “Loba”, uma obra quase inteiramente composta por ilustrações, Roberta buscou ressignificar a história de Chapeuzinho Vermelho, dando espaço à curiosidade de uma menina que deseja explorar a floresta e encontra uma loba, que se revela sua amiga. “A desobediência da mulher é sempre punida. Por que ela não pode se distrair com as flores?”. Já em “O coração que saiu pela boca”, com ilustrações de Tainan Rocha, Marcelo narra a história do coração do menino Hugo, que decide fugir pela boca para poder viajar e explorar o mundo.
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Cobertura | Sem fronteiras: redes e livros
A vida está repleta de imprevistos e circunstâncias capazes de nos surpreender. Em algumas ocasiões, uma ideia, uma opinião ou um desenho compartilhado nas redes sociais podem alcançar uma multidão e revelar novos caminhos para os autores. Isso foi o que aconteceu com o ilustrador Pedro Vinicio, que, durante a pandemia, começou a compartilhar alguns de seus desenhos, sempre acompanhados de frases que expressam o desânimo e o cansaço coletivo. Não demorou muito para que eles se tornassem virais, tornando-o um autor publicado, com a coletânea Tirando tudo tá tudo bem (Editora Cobogó, 2023).
Uma situação semelhante ocorreu com Patrick Torres, autor e estudante de Medicina, que desde a infância sentia que tinha muito a expressar e que, aos poucos, foi encontrando brechas através da literatura. Nas redes, ele começou comentando livros de outros autores, uma iniciativa que deu muito certo. Chegou o momento em que resolveu publicar o próprio manuscrito, O cozer das pedras, o roer dos osso (Astral Cultural, 2023). “Arte é querer acessar o outro”, afirmou Torres. Ambos os autores participaram da roda de conversa “sem fronteiras: redes e livros”, mediada por Tiago Valente, na qual contaram sobre seus sonhos e trajetórias.
Cobertura | Reescrever a história
Em frente à Casa Folha, uma fila extensa se formou para ouvir os autores Alexandre Vidal Porto e Eliana Alves Cruz na mesa “Reescrever a História”. Durante a conversa, ambos abordaram o perfil de suas obras, que partem de fatos históricos, mas enfrentam o mesmo desafio: a falta ou dificuldade de encontrar registros, especialmente quando se trata de grupos minorizados. Nesses casos, a literatura precisa preencher essas lacunas e compensar essas ausências, sugerem os escritores. “É para isso que serve a literatura, para mentirmos um pouco”, brincou Eliana.
Alexandre é autor de Sodomita (Companhia das Letras, 2023), onde narra a história de Delgado, um violeiro de Évora que chegou a Salvador em 1669, após ser acusado de sodomia. Eliana, que publicou Solitária (Companhia das Letras) no ano passado, também é autora do conhecido O crime do Cais do Valongo, um romance histórico-policial que se passa no início do século 19, contado do ponto de vista da escravizada Muana Lomué e de Nuno Alcântara Moutinho.
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Cobertura | Cartas para Saramago – 25 anos do Nobel
A risada e a emoção tomaram conta da plateia que lotou o auditório da Casa da Cultura durante a mesa sobre os 25 anos do Nobel de José Saramago. Os motivos foram as várias histórias íntimas (e hilárias) dos convidados, como a timidez na hora de conhecer pessoalmente escritores que foram referências em suas carreiras e dicas preciosas de seus processos de escrita literária. “Sou uma autora do silêncio e do espaço. Muitas vezes eu abandono a palavra para poder conseguir escrever. Há muitas lacunas, falhas, coisas que eu não alcanço, e eu assumo isso durante meus livros. O Saramago é o oposto, sinto que ele dá conta de tudo”, conta Aline Bei.
Para Jeferson Tenório, a literatura de Saramago é também uma grande aula de escrita criativa. “Ele é um dos autores que fundam uma maneira de escrever a língua portuguesa, tanto na questão estilística quanto na gramatical, com desafios que ele se coloca de fazer parágrafos imensos e sem pontuação, por exemplo”. Detalhes sobre a amizade e troca de cartas entre Jorge Amado e José Saramago também permearam a conversa. Itamar Vieira Junior, inclusive, revelou que se sentiu batizado como escritor na casa de Zélia Gattai e Jorge Amado, em Salvador. “Eles me deram conselhos valiosos. Falaram para eu ter paciência e me incentivaram a seguir na carreira.”
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Esse conteúdo é uma parceria entre a Flip e a Revista Bravo!