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Paisagens de dentro e de fora

Há uma terra fértil cultivada na literatura que é o fascinante e, ao mesmo tempo, temeroso espaço de criatividade onde tudo é possível, do nebuloso ao concreto. Ali caminham marginalidades literárias pujantes e ainda pouco exploradas, ou que, quando exploradas, são reduzidas por perspectivas limitadoras. É justamente essa a zona que se afasta da mente normatizada, dominada pelo consciente, iluminada pelo racionalismo ocidental que pune, tolhe e constrange tudo o que estiver fora de certa ordem ou coerência esperada da razão organizada.

Não são poucas as extraordinárias artistas e escritoras que tiveram suas produções artísticas reduzidas à estigmatização social, por terem sido rotuladas como criações feitas a partir da loucura, da depressão, do delírio, do sonho, da fuga da realidade, do nonsense, da rebeldia, da esquizofrenia, do misticismo, do delírio religioso, da epilepsia, do estado emocional alterado, da histeria, do isolamento ou da alteração da percepção sensorial pelo consumo de fármacos. Certas paisagens mentais são sacrificadas por um imperativo castrador da criatividade que abre, inverte, provoca e sonha.

Há interstícios de nossa paisagem cultural que necessitam de uma nova investida pelos bosques da imaginação e da criatividade. Há um encontro divino e humano que faz explodir imagens, desejos, universos oníricos e outras versões de sujeito. Entretanto, os caminhos de acesso para esses bosques são cercados por exclusão e violência. Em nome da norma, diversos corpos e palavras foram impugnados pelo simples fato de sustentarem uma existência que materializa pesadelos, sonhos proibidos, ardor por justiça e fé.

Há que se recuperar as simbologias desperdiçadas e as formas de luta inviabilizadas em nome do progresso e da furiosa necessidade de ordem, de exploração dos recursos, da sobreposição de uma raça ou de um gênero sobre os outros.

A dimensão empática da literatura é, sem dúvida, uma das razões por que buscamos um texto, um escritor ou uma escritora. No Auditório da Matriz da FLIP, em 2022, Annie Ernaux enfatizou que a literatura acontece por meio de um olhar, que é encarnado por uma pessoa. Virginia Woolf já revelara que quando escrevia gostava de ser uma emoção. Stella do Patrocínio, ao soprar “não sou eu que gosto de nascer, eles é que me botam para nascer todo dia”, ressignifica o seu estado mental transitório, jogando-o na força pulsante de vida. Clarice Lispector buscava entender e “reproduzir o irreproduzível” e, como nós, leitoras e leitores, procurava “sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador”.

Quando a literatura ocupa espaços coletivos, como a FLIP, quantos nos tornamos e quantos universos podemos ocupar para além daqueles que habitamos? O incontável e o impossível são resultados do movimento de sentir e sentir-se. O movimento de ver-se, proporcionado pelo texto, é um dos efeitos poderosos da literatura, mas não o único.

A literatura pode deslindar o movimento para uma travessia de reimaginação do espaço de convivência, no qual a emoção rejeita a censura, seja pelo que for, pelo conteúdo, pelo gênero, pela raça, pela etnia, pela orientação sexual, pela geografia ou pela condição econômica.

Em 2023, a Flip segue em busca da criação de outras formas de visitar as paisagens de dentro e de fora. A festa encontra a energia do movimento do corpo que liberta, respira, age e sente. Com os nossos corpos encontramos os sons, os sabores e as imagens que se apresentam em cada ponto do percurso, pessoal e coletivo. Como o corpo que mergulha ou que boia no mar, sentindo a emergência da onda e a oscilação das marés. Como o corpo que encontra a si, a multidão ou o outro. O corpo que não é refratário ao que o atravessa, e que não ignora o som e a passagem dos acontecimentos e dos seres com quem divide o espaço, como as aves, as montanhas, as florestas. Mais do que o local de partida e de chegada, interessam os deslocamentos. Tal como o corpo, nesse movimento interessam o vagueio, a deriva, a falta de destino, o imprevisível, a tentativa de tradução e o erro.