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Pressauro: Augusto de Campos e a reinvenção do agora

por Simone Homem de Mello

 

Por que Augusto de Campos é sempre-novo e inimitável: uma indagação que norteará esta breve divagação, sem que se pretenda desvendar o enigma da sua arte. A pista: ovonovelo / novo no velho (da série “Ovonovelo”, 1954-1960). O que singulariza a sua obra, nesse sentido, talvez seja a relação que ele estabelece entre presente, passado e futuro. PASSENTE / PRESTURO / FUTUADO / PRESSADO / PASSURO / FUTUENTE / PRESSAURO (“Pressauro”, 1970).

 

Não é difícil reconhecer que a produção poética e artística impulsionada pela rápida propagação das novas mídias eletrônicas e a ampliação do uso da tecnologia digital nas artes, a partir dos anos 1990, manteve a obra de Augusto de Campos como uma referência incontornável. Ele mesmo – que já havia explorado antes os letreiros luminosos e a holografia como espaços da poesia – foi um dos pioneiros no Brasil a usar as novas tecnologias digitais na literatura, concomitantemente aos experimentos iniciados nessa época em todo o mundo, dando mais um passo no sentido de lançar a palavra poética para além do suporte do livro. E continua fazendo isso, com a utilização das mídias sociais e com as publicações de plaquetes em off, reocupando espaços fora dos catálogos editoriais e dos canais institucionais. 

 

O que distingue, contudo, a poesia de Augusto de Campos dos experimentos surgidos durante a era digital é o fato de ela não ser originariamente intermídia ou multimídia, mas sim poesia e ponto, sem atributos. Isso também vale para a produção poética concreta dos outros fundadores do Grupo Noigandres, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. A relação entre os diferentes códigos em suas obras advém de uma consciência aguçada e de um amplo domínio do código verbal e da linguagem poética; é a partir da materialidade sonora, visual e conceitual da palavra que se estabelecem relações com outros códigos, artes e mídias – música, pintura, fotografia, escultura, cinema… Mais do que isso, o que ocorre na produção concreta dos poetas-de-Noigandres não é uma articulação de diferentes mídias em uma obra, mas sim a estruturação de uma medula verbal-poética de dentro da qual emergem outros códigos. (Mesmo as obras de Augusto que aparentam ser estritamente visuais poderiam ser descritas assim.) 

 

Isso significa que a poesia concreta de Noigandres existe por um domínio da técnica poética, dispensando, portanto, quaisquer recursos tecnológicos. Mesmo que Augusto de Campos venha a recorrer a eles posteriormente, continua não sendo a tecnologia aquilo que define a constituição do poema. Essa não é, portanto, a razão pela qual o poeta se mantém sempre-novo. Aliás, o que é interessante da boa poesia concreta é justamente ela ter projetado, em um gesto visionário (mas luminosos, ou filmletras, quem os tivera!, diz a introdução do ciclo “Poetamenos”, 1953), possibilidades de expansão textual apenas com tinta e papel. É essa condição de escassez tecnológica superada por uma visão poética de grande elaboração técnica que torna a Poesia Concreta inimitável hoje.

 

PRESSADO, PRESTURO

 

Algo que distingue Augusto dos outros poetas-de-Noigandres é a permanente reinvenção do presente em seus poemas. São muitos os estratos em que isso ocorre. Um deles é o resgate de outros tipos ou estruturas textuais e extratextuais que passam a agir junto com o poema, explícita ou subliminarmente. Palavras cruzadas, faixas de protestos e manifestações, painéis luminosos de notícias, folioscópio, caça-palavras, labirintos textuais, escrita Braille, dobraduras, charadas de almanaques, testes de visão, erratas, e também partituras e representações matemáticas: essas são algumas estruturas diagramáticas utilizadas por Augusto de Campos em seus poemas, a maioria das quais pertencente a contextos cotidianos de uso comunicativo e/ou lúdico da linguagem verbal e não verbal. 

 

Além disso: “É justamente na moeda concreta da fala, tão desgastada e falsificada pela linguagem discursiva, que a poesia concreta vai buscar (água na fonte) os elementos fundamentais da sua expressão”, formula Augusto em um artigo de 1957 (“A moeda concreta da fala”). E, de fato, o léxico e a sintaxe de seus poemas nada têm em comum com os abstracionismos, preciosismos e estados verbais de exceção da cultura letrada; muito pelo contrário, resgatam a fala corrente para dentro de uma estrutura poética que a desautomatiza, para – por fim – lançar esse novo condensado de linguagem de volta às ruas e à boca do povo (“VIVA VAIA”, 1972). Não é à toa que o poema “Luxo” (1965), por exemplo, tenha sido assimilado ao logotipo de uma loja de móveis usados (“Lixão”) debaixo do Minhocão, no centro de São Paulo, e reaparecido numa canção de Rita Lee. Os poemas de Augusto saem do presente para retornarem a ele, reformulando-o e convertendo-se em nova moeda da fala. 

 

Outro aspecto é o eterno presente da recepção do poema. A Poesia Concreta, mais particularmente a de Augusto, coloca o leitor de agora no centro do processo de realização poética, à medida que transforma a leitura em um ato de decifração ou decodificação, inclusive visual, do texto (muitas vezes jogando até com efeitos da op art). Ao prolongar o tempo de leitura, Augusto desloca o poema para outra dimensão temporal, radicalizando e hipertrofiando o presente tenso e denso no qual o poema sempre se refaz (on / de / se // lê //

le / ia / se // le / ia / se / vê, “deserrata”, 2013). 

 

PASSENTE, PASSURO

 

Na poética concreta, o presente contém o passado. Tendo como referência central o make it new de Ezra Pound [renovar / dia / a / dia // renovar / sol/ a  sol, “renovar (confúcio/pound)”, 1983] – que atribuía aos poetas a responsabilidade (est)ética de resgatar, por meio de poesia, tradução e crítica, tradições literárias condizentes com a inventividade do presente modernista –, os poetas-de-Noigandres reinventaram o cânon literário estrangeiro e brasileiro no programa altamente elaborado da Poesia Concreta, em seus inúmeros artigos e livros, em coautoria ou individuais, desde os anos 1950. Nas traduções de Augusto de Campos – resultantes de um legítimo corpo a corpo com o original, um jogo que, como a regência de Pierre Boulez na música, torna transparente a anatomia do poema e revela seus ossos, tecidos e nervos –, autores de todos os tempos soam como de hoje. Não porque haja qualquer tipo de atualização forçada de registros, mas porque a linguagem sucinta, sensível e certeira com que ele capta dicções das mais diversas, dos trovadores provençais a John Cage, faza com que os poemas traduzidos se façam presentes em um futuro-do-pretérito. 

 

Outro é o modo de presentificar o passado na sua obra poética. Por mais simples que pareça, a poesia de Augusto de Campos advém de um complexo processo de estratificação de referências (conceituais, visuais e sonoras) e de compressão de tensões internas (“p p p o o o  e e e m m m a a a b b b o o o m m m b b b a a a”, 1987). É nos seus “profilogramas” e nas suas “intraduções” que ele revela de modo mais explícito alguns procedimentos de sobreposição e síntese de sua poesia. Nesses gêneros poéticos, ele desloca elementos – citações textuais e iconográficas – para dentro do poema, como um ready-made, mas não só. As referências sobrepostas são, mais do que isso, combinadas em um emblema “verbivocovisual”, no qual os elementos se potencializam reciprocamente, tornando-se indissociáveis. Introjetando o alheio – linguagem e imagens de terceiros –, o poema refaz o outro, simboliconicamente, explicitando um programa estético segundo o qual a poesia nunca fala sobre, mas faz-se o que diz, dizendo o que faz. Por meio desse procedimento, Augusto resgatou fragmentos textuais e estruturas gráficas e pictóricas de diferentes tradições e autorias e forjou formas lapidares que evocam o passado em corpo presente.

 

FUTUENTE, FUTUADO

 

É importante lembrar que Augusto de Campos foi o único fundador do Grupo Noigandres a dar continuidade a uma poesia “verbivocovisual”, contra todas as tendências literárias e modas teóricas dos últimos quarenta anos. Tanto Décio como Haroldo tomaram outros caminhos como autores após a fase programática da Poesia Concreta. Em meados dos anos 1980, Augusto se posicionou de modo irônico diante do reanunciado e reteorizado fim da modernidade (e, logo, das vanguardas) – assimilado por Haroldo de Campos, por exemplo, na exploração do conceito de pós-utópico –, publicando seu polêmico poema “Pós-tudo”, cuja subversiva ambiguidade não chegou a ser captada por alguns críticos: “QUIS  /  MUDAR TUDO  /  MUDEI TUDO  /  AGORAPÓSTUDO  /  EXTUDO  /  MUDO” (1984). O poeta “quis-tudo-tudo-tudo-tudo” e continuou querendo mudar e continuou mudando muito em sua estudiosa mudez, mantendo-se até hoje presente nos cartazes dos protestos populares e infiltrando-se nas mais recentes canções agitprop com seus “contrapoemas”: JA IR / JÁ FOI / JÁ VAI / JÁ ERA / JAIR (2020). 

 

O que singulariza a avant-garde, termo militar, é a sua disposição combativa, de ir contra a corrente, contra o mainstream. Na obra de Augusto de Campos, o repúdio ao status quo literário, cultural e sociopolítico já se manifesta no engajamento resoluto que representam, em termos poéticos, a negação, a renúncia, a subtração: “Poetamenos”, “Verso reverso controverso”, “Despoesia”, “NÃO”, “O anticrítico” e “Poesia da recusa” são alguns dos títulos dos seus livros. A poesia de vanguarda é aquela que sempre deixa entrever, em suas linhas e entrelinhas, o que ela combate (“humanoautênticosinceromasaindanãoépoesia”, de “NÃO”, 1990), o que ela se recusa a ser e representar. É nesse sentido que a utopia ex negativo para a qual aponta a poética de Augusto de Campos coincide com o lugar impossível que já foi considerado o impasse, o beco-sem-saída das vanguardas (“aestradaémuitocomprida / nãopossovoltaratrás / nuncasaídolugar / nãopossoirmaisadiante / leveitodaaminhavida / curvasenganamoolhar / ocaminhoésemsaída”, “Sem saída”, 2000). O lugar-sem-lugar circunscrito pela poética de Augusto de Campos, “à margem da margem”, é o vazio, o branco da página, de onde continuará emergindo a palavra. 

 

Embora os tipos e as fontes de seus poemas (da Letraset às fontes digitais) tragam marcas de época, quase inevitáveis em se tratando de design, embora o contexto das vanguardas dos anos 1950, matriz da sua poética, seja bem distinto da contemporaneidade, a sua obra se mantém mais atual do que nunca, ciente da história, sempre-nova e inimitável, um privilégio dos clássicos e poetas (da Futura e) do futuro. Apesar de ter obras em importantes museus do mundo, apesar das premiações nacionais e estrangeiras, apesar de ser traduzido para diversas línguas, apesar de ter sido referência fundamental na formação do repertório literário e estético das últimas gerações no Brasil, Augusto de Campos não se tornou mainstream. Um poeta e uma poesia com medula ética e estética, incapazes de se deixar cooptar por quaisquer discursos e teorias da moda, lobbies jornalístico-editoriais (NÃOMEV / ENDONÃ / OSE VEN / DANÃOS / EVENDE, “Não me vendo”, 1988) e trustes institucionais, independente das vias de circulação literária e artística monopolizadas por certos quartéis-generais de uma cultura pasteurizado e esterilizante. Uma posição que chama ainda mais atenção numa época em que o querer-pertencer e as ilusões de pertencimento se tornaram unânimes. 


O que também corrobora a posição de Augusto de Campos na vanguarda, ainda que não seja mérito do poeta, é o fato de termos visto, em anos recentes, a história se repetir pela segunda vez como farsa. Durante o inimaginável retrocesso político-social no Brasil, Augusto mostrou que a guerrilha de seus contrapoemas tem mais efeito que a maioria das reações artísticas contemporâneas ao ressurgimento do totalitarismo militaresco-miliciano no país, com pleno apoio das sempre-mesmas “elites” (ou tropas-de-elite) e das sempre-mesmas massas de manobra. Nesse contexto, nada mais atual que as exclamações dos personagens de HQs mostrando o muque na capa que Décio Pignatari fez para “Teoria da poesia concreta” (1965). Brucutu: “A poesia é concreta e participante”. Mandrake: “A realidade destruirá os falsos mágicos diluidores”. Amigo da Onça: “Tó pra vocês, chupins desmemoriados!”. Nesse sentido, a velha guarda continua sendo vanguarda. E Augusto continua a reinventá-la e a reinventar-se, agora.

 

Simone Homem de Mello é escritora e tradutora literária. Escreveu libretti para as óperas Orpheus Kristall (Munique, 2002), Keine Stille außer der des Windes (Bremen, 2007), UBU – eine musikalische Groteske (Gelsenkirchen, 2012). Seus poemas em português estão reunidos nos livros Périplos (Ateliê Editorial, 2005), Extravio marinho (Ateliê Editorial, 2010), Terminal, à escrita (Lume, 2015), e em antologias brasileiras e estrangeiras de poesia contemporânea. Recentemente, organizou e traduziu para o alemão a antologia Augusto de Campos: Poesie (2019), traduziu para o porguguês brasileiro Ensaio sobre o cansaço e Ensaio sobre o dia exitoso, ambos de Peter Handke (Estação Liberdade, 2020), Phantasus: poema non-plus ultra (Perspectiva  2022), de Arno Holz, obra com a qual também contribuiu com ensaios críticos, e escreveu a peça radiofônica Die andere Sprache (2023).