Leia abaixo o poema inédito escrito por Marília Garcia e apresentado na mesa 14: alguém telegrafa para o mundo pedindo atenção, que compôs o Programa Principal da 21ª Flip:
ontem à noite combinamos
que cada um leria um poema aqui
e eu voltei para a pousada caminhando e
pensando em qual poema ler
aí ouvi uma pessoa que estava atrás de mim dizendo —
não sei se ela está aqui me ouvindo agora —
ela disse que paraty era como um buraco de minhoca
esse conceito da física
que é uma espécie túnel
em que tempo-espaço se distorcem
e um dia aqui é como se fosse uma semana, ela disse
eu pensei que era verdade
mas que tive mais a sensação de estar mergulhada
num outro túnel
uma espécie de túnel aquático
nessa hora eu olhei para o chão e a rua estava alagada
as ruas aqui são cheias de remansos
esses corpos d’água que se espalham
pela cidade quando a maré sobe
é curioso porque ficamos vários dias
meio imersos na água
água da chuva da umidade do calor
e foi como dar um mergulho num túnel
molhado
mas enquanto eu pensava nisso
de repente a luz apagou
e tudo ficou muito muito escuro
e eu fiquei parada sem saber para onde ir
aí no escuro
eu me abaixei nas pedras
e comecei a escrever um
poema inédito
sempre me pedem para ler
poemas inéditos
e achei que devia escrever um
nessa hora começou
a tocar uma melodia
foi bem alto
não sei se vocês ouviram
tã-rã-rã tã-rã-rã
nesse instante
sou tomada por uma
dúvida sobre o meu poema inédito
será que não
estou sempre tentando
dizer a mesma
coisa? no escuro
eu me perguntei
como fazer para
congelar o tempo? como
dizer para cada um que está aqui agora ouça
segure esse fio
invisível entre a gente
isto é um poema
e ele diz
estou aqui para você
o que eu posso tentar fazer
é segurar o presente
que temos em comum
e é isso que tem sido importante para mim
pensar nesse presente compartilhado agora
eu a dolores o gustavo a natalia
vocês que estão me ouvindo aqui no auditório
ou na praça ao lado
ou no youtube
o que temos em comum é esse presente
estarmos juntos aqui
nesse túnel
de água
ou de poeira
eu sempre me surpreendo com a poeira que turva
a vista
não sei se vocês já viram
turva a vista da américa latina
de repente no meio do dia uma nuvem de poeira se ergue
poderia ser a poeira das coisas quebradas
todos os dias na vida das pessoas?
e eu fiquei pensando
como pegar as palavras
apressadas
que eu uso todos os dias
oi tudo bem? palavras que me servem
para oferecer um café
palavras de boas-vindas
como usar
essas palavras
apressadas
para compor um
poema?
um dia disseram que
a mágica seria essa:
fazer o tempo congelar
e dobrar com as palavras
mais simples e comuns da
língua
e eu queria parar
o meu poema inédito no meio
e voltar atrás
para tentar achar as perguntas certas
e descobrir como fazer
a mágica
mas já estamos aqui
avançamos aos poucos nesse tempo
e não tenho outra escolha
a não ser seguir adiante
assim como a vida
que vai sempre em frente
e podemos até tomar um
desvio a certa altura
mas não tem volta
e no escuro ontem à noite
eu pensei que eu queria que a melodia
desse poema inédito
pudesse
me fazer parar
e eu queria que ela
pudesse de repente
me fazer chorar
como a melodia
que ouço no ar
tã-rã-rã tã-rã-rã
tã-rã-rã tã-rã-rã
hmhmhmhmhmm….