A literatura indígena contemporânea no Brasil: a autoria individual de identidade coletiva

A Literatura Indígena Contemporânea no Brasil é um movimento estético-político protagonizado pela identidade indígena. A identidade indígena é originária, ancestral, e reside nos corpos de nossos antepassados, de nossos povos, os primeiros que caminharam sobre essa terra, muito antes de os brancos existirem aqui, como disse o cacique Raoni Metuktire.

 

A conjuntura política, colonial e republicana, como mostrou Maria Santos e Guilherme Felippe, foi escravocrata e repressiva com os povos originários. Essa sistemática violência física impossibilitou a expressão indígena na literatura brasileira, mas não impediu que os escritores brasileiros usassem as referências de corpos e tradições originários a partir de seu espelho colonial.

 

Assim, chegamos ao século 21 com inesquecíveis personagens da literatura brasileira que traduzem o menosprezo pelas gentes indígenas no Brasil: Peri, protagonista do romance O Guarani (1857), de José de Alencar, é o “bom selvagem”. Ele exerce servidão voluntária e rende-se à beleza europeia, levando o leitor a crer que há uma beleza e postura superiores identificáveis apenas no colonizador europeu. Porém, quando vemos uma obra de autoria indígena ser publicada, vemos o sentido de estética e julgamento de valores contrários aos representados secularmente. Descrevendo o primeiro contato com o homem branco, o xamã yanomami Davi Kopenawa diz: “Achava-os de uma feiura terrível e meu coração batia forte no peito. Tinha muita vontade de fugir, como os grandes, mas não queria chamar a atenção” .

 

– Ai que preguiça! É uma frase conhecidíssima na literatura brasileira. Pronunciada pelo anti-herói Macunaíma, do escritor modernista Mário de Andrade. A indolência foi amplamente utilizada como argumento racista para justificar a escravização dos povos indígenas nos redutos jesuíticos. Porém, ao lermos uma obra de autoria indígena vemos uma outra descrição, um princípio até de vida, de bem-viver. André Baniwa, em sua obra Bem viver e viver bem: segundo o povo Baniwa no noroeste amazônico brasileiro, apresenta o Ideenhikheetti idzekatti iyo (mheeninaatsa, makonatsa phaa, kakona tsakhaa phaa), isto é, o “Trabalhar com arte faz ter sempre o que precisa evitando uma imagem negativa e investindo na imagem positiva”; e, ainda, o Pideenhi pirhiokaro pidzaadawa, “Trabalhe para ter o que é seu”; Walhiotsa pomenaka whaa, “Precisamos ter muita vontade para trabalhar”, entre outros. O trabalho é um princípio indígena, e com isso notamos que a indolência, a preguiça atribuída ao indígena na literatura brasileira, nada mais é que um espelho da própria inaptidão para o trabalho, da vontade de acúmulo, acompanhada da característica desumanizante de escravização. O que poucos sabem é que o nome Macunaíma originalmente pertence ao povo Macuxi e outros que habitam a região do Circum-Roraima. É uma divindade, e suas histórias ancestrais são repassadas de geração em geração pelas comunidades que habitam o território.

 

A literatura brasileira acompanhou o projeto de Estado-nação que visava dar cabo dos povos indígenas para apropriar-se de suas terras e direitos. Ambos os projetos, indianista e modernista, colaboraram para recrudescer políticas indigenistas que atacavam a humanidade, a identidade e o direito à cidadania indígena.

 

As políticas de extinção contra os povos indígenas foram executadas em primeiro lugar em nome de Deus. Os missionários jesuítas, e outros, vieram com a missão simbólica de salvar a alma indígena, mas não só. Paradoxalmente, a retórica da salvação, diz Walter Mignolo, na obra A ideia de América Latina: a ferida colonial e a opção decolonial, vem acompanhada de apropriações de grandes extensões territoriais, genocídio e escravização. Não foi diferente aqui. Num segundo momento, houve o ataque à identidade indígena por meio da política conhecida como “integração”, ensejada sobretudo a partir de 1910 com a criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Trabalhadores Nacionais, agência estatal que ficaria conhecida como SPI, e seria substituída em 1967 pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). As publicações brasileiras acompanharam o pano de fundo político sobre o qual versava o Estado.

 

No fim do século 20, especificamente em 1988 e 1989, os povos indígenas conquistaram o direito à sua identidade originária e coletiva, pondo fim, ainda que juridicamente, à tradição ocidental da identidade única. Os marcos legais foram a Constituição Federal, no âmbito nacional, e no internacional, a Convenção 169 da OIT, respectivamente.

 

Nesse sentido, é importante perceber que os povos indígenas têm direito à sua identidade originária, que é anterior à identidade do Estado-nação Brasil. E se os sujeitos indígenas a endossam tão veementemente é tão somente porque ela só pôde ser afirmada há 33 anos. Importante lembrar também que o Brasil ainda é um Estado-nação, isto é, que defende uma identidade apenas, apesar das 305 (tribos?) indígenas existentes e reconhecidas nacionalmente. A Bolívia para dar um exemplo, se outorgou plurinacional, que significa reconhecer outras identidades dentro da sua extensão territorial. Ao buscarmos o país na internet, encontraremos respectivamente os nomes oficiais: Estado Plurinacional de Bolivia (espanhol); Buliwya Mama Ilaqta (quíchua); Wuliwya Suyu (aimará); Tetã Volívia (guarani); Estado Plurinacional da Bolívia.

 

Vou explicar brevemente a lógica da identidade nacional. Quem nasce no Estado brasileiro, para existir como pessoa jurídica, como sujeito de direito, deve ser registrado pelos responsáveis. Esse primeiro documento, o registro de nascimento, dá uma certidão ao sujeito. Mais tarde, o sujeito poderá retirar com ela o Registro Civil, o Cadastro da Pessoa Física (CPF), a Carteira de Trabalho, entre outros, todos os documentos que dão direitos, mas também deveres legais de acordo com a conjuntura jurídica estabelecida no país. Quem nasce no território brasileiro, em qualquer um dos 26 estados e mais a capital federal, automaticamente possui a cidadania brasileira. A rigor, quem possui a cidadania também compartilha da identidade brasileira, pois está num território reconhecido como Estado-nação Brasil, onde território, nação e identidade se identificam como brasileiros. Porém, os povos indígenas já estavam neste território antes mesmo de ele se chamar Brasil e ter suas atuais configurações.

 

Até o advento da Constituição Federal de 1988, o país não aceitou a possibilidade de a identidade indígena ter direitos legais, e por isso decretou a “integração”. Acusando os indígenas de primitividade, selvageria, se empenhou em extinguir a identidade nativa. Para existir no país, era preciso dominar os costumes e as ferramentas do homem branco. Além disso, um documento da FUNAI decretou o fim dos (poucos) direitos indígenas, que passariam a viver apenas sob o guarda-chuva dos direitos brasileiros, como podemos ver no Estatuto do Índio (1973). Assim, os indígenas deixavam simbolicamente de existir para o Estado brasileiro. Isso significava que o indígena era visto como alguém que tinha evoluído de primitivo/selvagem para cidadão brasileiro/integrado, e agora podia trabalhar como qualquer outro cidadão.

 

A política da identidade indígena estatal ainda é a mesma: só é considerado indígena no país quem está nas terras demarcadas pelo Estado brasileiro, aqueles que estão fora desse domínio não estão ou são incluídos em políticas de saúde e educação diferenciadas como preconiza a Carta Magna. Nesse sentido, deixar de ter direitos originários significava – e significa – deixar de ser indígena para o Estado-nação Brasil. Vimos isso com a crise sanitária da pandemia da Covid-19, pois somente os povos que receberam vacinas prioritárias foram aqueles que estavam em terras demarcadas pelo Estado. Aqueles que não estavam ou não eram reconhecidos não receberam o imunizante, mesmo diante das mortes que estavam acontecendo.

 

É por isso que não vemos um movimento literário de escritores indígenas antes da década de 1990. Pois existir e ocupar outro ofício na sociedade dominante teria significado a derrocada da identidade indígena. Os intelectuais, políticos, ativistas indígenas, enquanto movimento político, já vinham enfrentando tais políticas de extinção desde a década de 1970. Essa resistência ficou conhecida como Movimento Indígena, que teve como êxito a assinatura dos direitos indígenas no artigo 231 e 232 da Constituição Federal de 1988.

 

A publicação editorial de obras indígenas, isto é, de autores indígenas, a partir da década de 1990, então, viria confirmar a urgência em protagonizar a identidade indígena, pois nela residia memórias e histórias ancestrais, evidenciaria os conflitos territoriais ensejados pela sociedade dominante, o presente histórico dos povos ocultado sob falsas premissas, as estéticas presentes nas culturas e nas narrativas originárias, e o paradigma indígena assentado na floresta, que ressaltaria a urgência da proteção ambiental em nível global.

 

Autoria individual, identidade de povo

 

Segundo a Bibliografia das Publicações Indígenas do Brasil, há 58 escritores indígenas listados, classificados em suas respectivas identidades de povos. Isso porque ser indígena é se reconhecer e ser reconhecido como pertencente a um povo originário, chamado de pré-colombiano, isto é, com existência anterior aos brancos nessas terras.

 

Quando os indígenas se veem em confronto direto com a sociedade dominante, resultado da configuração colonial do século 16 em diante, buscam ferramentas para lutar pela sua cultura e por seus territórios. Dessa maneira, vimos surgir no cenário brasileiro editorial, Daniel Munduruku, Kaká Werá e Olívio Jekupé na década de 1990. E, na década subsequente, Eliane Potiguara, Tiago Hakiy, Yaguarê Yamã, Roni Wasiry Guará, Graça Graúna, entre outros. A publicação editorial e, também, o surgimento em segmentos culturais desmistificariam todo o sistema da “integração” construído para negar a identidade indígena.

 

Com suas identidades de povos originários, os sujeitos indígenas inauguraram outro movimento, na cultura, que Daniel Munduruku chamou de “indígenas em movimento”, isto é, a atuação individual em ofícios negados a eles pelo Estado brasileiro, que são de ordem de direitos humanos básicos: com a nova legislação podiam ser escritores, cantores, professores, artistas visuais, pintores, contadores de histórias, ou seja, atuar na sociedade dominante sem que isso lhes tirasse a identidade indígena legalmente.

 

Essa atuação informou a sociedade envolvente da existência indígena a partir de outro olhar que não o da integração, mas o do pertencimento e da celebração da identidade de muitos povos que sempre existiram aqui.

 

A atuação dos sujeitos indígenas no ofício do escritor não pode ser confundida como uma representação política. É preciso entender que toda sociedade indígena possui seus próprios mecanismos de representação política, e que um indígena escritor que atua na sociedade dominante, escrevendo e publicando livros, embora tenha uma identidade coletiva, faça parte do povo ao qual carrega o nome e a identidade em seu existir no mundo e em seus livros, não substitui as lideranças políticas do cacique (em alguns casos, o nome é intitulado tuxaua), do vice-cacique e do secretário que atuam na defesa do território e das comunidades. Acredito que o termo mais apropriado seja representatividade, ou de como a presença de um indígena no mercado literário – no caso do escritor Daniel Munduruku, através da promoção de concursos literários que incentivam a literatura indígena no país –, repercute na autoestima dos indígenas, sobretudo os jovens que passaram a crescer com uma referência, algo que a geração da década de 1990, como é o meu caso, não viveu.

 

Plantando sementes

 

Gostaria de encerrar essas ponderações sobre a literatura indígena reiterando alguns pontos que aprendi nos últimos tempos. Primeiro, que a Literatura Indígena Contemporânea é um movimento que nasce na década de 1990 para a sociedade dominante, que sempre enxergou o indígena a partir da voz e do espelho não indígenas. Por isso, é necessário destacar que a Literatura Indígena Contemporânea é um movimento estético-político muito anterior ao registro alfabético ocidental, ou seja, é ancestral e sempre esteve na memória e na prática de nossos povos.

 

Segundo, esteve presente em todo o território de Abya Yala, conhecida e cartografada como América Central, do Norte e do Sul. Como povos originários, reconhecemos que as fronteiras nacionais foram imposições que desconsideraram nossas histórias ligadas à terra e aos nossos modos de vida e o desenvolvimento em nossos biomas. Também foram criações ficcionais, que, com grandes expropriações territoriais e culturais, serviram de base para a criação do Estado moderno, que perseguiu e persegue nossas identidades, cidadanias e humanidades, como denunciou Walter Mignolo.

 

Terceiro, que a nossa expressão literária não reside apenas na escrita alfabética e no livro editorial, mas também na oralidade e em escritas-desenho, que são chamadas de escritas pictoglíficas, hieroglíficas.

 

Quarto, que as poéticas indígenas são ancestrais e cantam a terra, a pluralidade de seres humanos e não humanos que habitam a floresta, os cosmos e os universos. Mas não só: cantam, contam ou escrevem sobre a soberania violada, denunciando a história do Império colonial que nos subtraiu o direito de determinarmos nosso próprio destino. Assim, é ancestral e histórica concomitantemente.

 

Por tudo isso, reafirmamos a reivindicação pela nossa soberania, que seja reconhecido o nosso direito originário de determinarmos nosso próprio destino, que a nossa escrita e expressões sejam reconhecidas como humanas, em todas as complexidades que isso envolve, e que o Brasil possa ponderar sobre a sua história sem parcialidade predominante. O acento tônico da colonização, isto é, de quem apetece a romantização ou idealização da matriz colonial, é inexoravelmente parcial. Isto é, sempre conduz o leitor, ou o espectador, ao seu ponto de vista, do vencedor. Do lado indígena, ser vencedor significa um legado de destruição e morte que não foi interrompido com a independência das nações, mas que continuou reelaborado de formas sutis e naturalizadas dentro do sistema nacional. Como diz o escritor Daniel Munduruku, estamos aqui para ficar, na nossa casa, na nossa terra. Assim, encerro este ensaio com um poema de minha autoria:

 

Retomada

 

Como você se atreve a nos chamar de pobres hoje

Se foi você que tirou nossa terra?

Como você se atreve a nos chamar de feios

Depois de ter violado nossas mulheres?

Como você se atreve a nos chamar de preguiçosos

Se foi você que nos matou de trabalhar?

Não somos pobres

Fomos empobrecidos

Não somos feios

Fomos embranquecidos

Não somos preguiçosos

Fomos escravizados, tutelados

Então, como você se atreve?

Há luas e luas

Nossos ancestrais teceram nossa história de glória

Por isso lutamos para reaver:

A terra que nos foi roubada,

A voz silenciada

O corpo ocultado

Nossas belezas

Nossos encantados

Nossos povos

Nossas vidas

Então

Nunca mais se atreva a nos diminuir no seu espelho.

 

Julie Dorrico pertence ao povo Macuxi. É doutora em teoria da literatura (PUCRS) e autora de Eu sou macuxi e outras histórias (Caos e Letras, 2019), que venceu o Concurso Tamoios/FNLIJ/UKA (2019). Participou das coletâneas Escritas femininas em primeira pessoa (Oralituras, 2020); De repente adolescente (Seguinte, 2021) e Geração 2010: o sertão é o mundo (Reformatório, 2021). É administradora do perfil @leiamulheresindigenas e do canal no YouTube Literatura Indígena Contemporânea, onde entrevista autores indígenas. Em 2021, tornou-se a primeira indígena a ter uma coluna fixa na ECOA/UOL. Com subsídio do SESC, produziu a websérie Leia Autoras Indígenas, onde apresenta oito escritoras e duas oradoras indígenas no Brasil.

 

Notas


1 “Nossos antepassados, nosso povo, fomos nós que caminhamos primeiro sobre essa terra, vocês brancos não existiam aqui”. Documentário Falas da Terra. Ver min 33:39-33:41. Disponível em:  https://globoplay.globo.com/v/9449503/programa/. Acesso em: 25 out. 2021

2 Maria Cristina dos Santos e Guilherme Galhegos Felippe. Debates sobre a questão indígena:: Histórias, contatos e saberes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2018.

3 Davi Kopenawa e Bruce Albert. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Ed. de Bruce Albert. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 243.

4 André Baniwa. Bem viver e viver bem: segundo o povo Baniwa no noroeste amazônico brasileiro. Curitiba: Ed. UFPR, 2019. p. 37, 38 e 39, respectivamente.

5 Walter Mignolo. La idea de América Latina. La herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007.

6 Disponível em: Bibliografia das publicações indígenas do Brasil/Introdução – Wikilivros (wikibooks.org). Acesso em: 25 out. 2021.

 

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