A pouco mais de 20 quilômetros do centro histórico de Paraty, às margens da rodovia Rio-Santos, uma antiga tradição rural e uma manifestação urbana contemporânea convivem em perfeita sintonia. O jongo, dança trazida pelos africanos da diáspora, e o hip-hop, manifestação surgida nos guetos de Nova York, fazem parte da mesma trilha sonora original que embala os moradores do Quilombo do Campinho da Independência, reduto de resistência dos negros paratienses há séculos. Apesar de o hip-hop e o jongo estarem separados por algumas centenas de anos na genealogia da música negra no planeta, os grupos Realidade Negra e Jongo do Quilombo do Campinho surgiram praticamente ao mesmo tempo na cidade costeira do sul fluminense.
Ambos os conjuntos remontam à primeira década do século 21. A mestra jongueira Laura Maria dos Santos, que ajuda a organizar as apresentações do coletivo, explica que o jongo ficou “adormecido” em Paraty durante um longo período. Com auxílio do projeto Pontos de Cultura, idealizado pelo então ministro Gilberto Gil em 2004, foi possível restabelecer a tradição em terras paratienses. Através de oficinas ministradas por quilombolas do Bracuí, comunidade localizada na vizinha Angra dos Reis, foi possível despertar a manifestação cultural, marcada pelo canto, pela dança e pela percussão, novamente na cidade.
– O grupo veio para resgatar essa cultura que estava esquecida aqui. Conheci melhor o jongo no Rio de Janeiro, onde morei por 40 anos – conta mestra Laura, que assim como muitos de sua geração deixou Paraty em busca de mais oportunidades. – A gente queria trazer o jongo de volta a Paraty, chegamos a tentar trazer jongueiros do Rio, mas a distância era muito grande. Então conhecemos o Délcio, mestre de Angra dos Reis. Através dos Pontos de Cultura, ele veio nos ensinar os primeiros passos. A partir daí, a gente fez esse intercâmbio e não parou mais.
Atualmente, o grupo varia em tamanho conforme a apresentação, mas mantém apenas uma regra de ouro: apenas os quilombolas podem fazer parte dele. Com mulheres vestidas de saias floridas de chita e blusas brancas e os homens todos de branco, os dançarinos reproduzem as coreografias surgidas no Congo e em Angola e trazidas ao Brasil por escravizados da etnia bantu. Se no passado distante o bailado era permitido apenas para os adultos, hoje as crianças também podem fazer parte da festa.
– A cultura do jongo é de encantamento, de acolhimento. O jongo é uma escola. Ele forma as crianças e dá disciplina a elas – argumenta mestra Laura. – Ele é aberto apenas para a nossa comunidade porque a gente tem um propósito bem específico, resgatar nossa tradição. No Campinho, o jongo é fechado para fora e aberto para dentro.
O hip-hop também chegou ao Campinho da Independência na virada dos anos 2000, na carona de outros ritmos eletrônicos populares como o funk. Mano Romero, vocalista do Realidade Negra, relembra com detalhes a primeira vez que ouviu os versos de um rap. Recebeu uma fitinha caseira sem título e foi informado por um amigo que aquilo que estava prestes a ouvir era um “funk falado”. Na verdade, a fita magnética continha “Capítulo 4, versículo 3”, clássico absoluto que os Racionais MCs registraram em Sobrevivendo no Inferno (1997).
Vestido com um moletom preto e boné dos New York Yankees, sentado à mesa do restaurante do quilombo, Mano Romero repete – palavra por palavra – a introdução feita por Primo Preto, colaborador ocasional do grupo paulistano: “Sessenta por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras. Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros. A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”.
As palavras afiadas do quarteto de São Paulo ecoaram para sempre na mente de Romero. A composição foi o gatilho para que ele se atirasse no universo dos Racionais MCs, que volta e meia se descrevem como “os quatro pretos mais perigosos do Brasil”. O servente de pedreiro, que sonha em viver apenas de música, conta que os versos de Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue e os scratches do DJ KL Jay o ajudaram de maneira fundamental a solidificar o orgulho de suas raízes. Sobretudo na adolescência. Vítima de comentários preconceituosos na infância, conta que passou a perceber o poder e a beleza de se identificar como um quilombola e de reivindicar sua cultura aos altos brados.
– Aquilo foi me fascinando. Nessa época, eu tinha de 11 para 12 anos – conta Romero. – Mesmo morando numa comunidade negra, eu não tinha noção do que era ser um quilombola. Só ouvia falar de quilombo na escola, nos dias 13 de maio e 20 de novembro. Minha autoestima como negro era bem lá embaixo. Eu falava que era moreno, alisava o cabelo, tentava negar minhas origens… E o rap veio para resgatar esse orgulho. A gente admirava os cabelos black power e a postura dos rappers.
Desde então, o interesse pelo assunto só cresceu, e ele começou a rabiscar suas primeiras letras contando a realidade à sua volta. Primeiro, o rapaz se juntou ao primo Nelião, que também escrevia linhas inspiradas nos rappers famosos. Eles se uniram aos amigos da Ágape, na época uma banda que se apresentava em igrejas, para formar em 2004 aquele que seria o primeiro grupo de rap quilombola do país. Hoje, além da dupla de versadores, o Realidade Negra conta com Body Power (baixo e voz), Negro Naldo (guitarra e voz), B2 (guitarra) e Fabio Black (bateria). Com uma sonoridade eclética, bastante calcada na MPB, os instrumentistas fornecem a cama sonora perfeita para os versos de Mano Romero e Nelião.
No início, os habitantes mais antigos do bairro não viam com bons olhos a atitude diferente e ligeiramente agressiva da garotada do hip-hop. Mas, aos poucos, a banda foi ganhando corações e mentes no Campinho da Independência. As letras, que enfocam as lutas diárias das comunidades tradicionais, foram aprovadas pelos sábios “griôs”, guardiões das tradições locais. Gravado ao vivo na comunidade em 2009, É Prus Guerreiro a Missão, único disco da banda, mostra bem a forte relação do grupo com o público local, que canta as letras com entusiasmo.
Os versos quilombolas fizeram bastante eco para além da fronteira de Paraty e alcançaram outras regiões do país antes inimagináveis para os integrantes do grupo. Viajaram por diferentes estados da federação e dividiram palco com nomes respeitados do rap, como Rappin’Hood, GOG, DMN e BNegão, e da MPB, como Toni Garrido, Sandra de Sá, Leci Brandão e Zezé Motta. Em 2007, participaram de um bate-papo e se apresentaram ao lado do poeta e ativista inglês Benjamin Zephanaiah durante a Festa Literária Internacional de Paraty. O grupo, que permaneceu em hiato durante boa parte da pandemia da Covid-19, voltou aos palcos para uma apresentação virtual no festival Tradicionalidades, em maio de 2021.
Mano Romero enxerga alguns fatores que aproximam a cultura hip-hop do universo do jongo. O primeiro deles é a ligação umbilical com a percussão: enquanto as baterias eletrônicas fornecem os beats para os versos dos MCs, três atabaques fazem o mesmo papel para os jongueiros bailarem. A habilidade para versar de improviso também é um elemento semelhante, garante o rapper, além da temática das letras. Tanto o hip-hop quanto o jongo, argumenta, são manifestações de resistência ao poder estabelecido.
– O rap, assim como o jongo, é uma coisa ancestral. Não existe força do tempo que desligue isso – sentencia Romero. – A marcação das batidas do rap com certeza veio do tambor africano. Os dois também passam a mensagem. São símbolos de luta e resistência para nós. Antigamente, as rodas de jongo eram usadas para a comunicação e o planejamento dos escravizados que se voltavam contra os senhores de engenho. Aparentemente, era uma dança inofensiva, mas as letras eram cheias de mensagens em códigos para os bons entendedores.
Tanto para o jongo quanto para o hip-hop, o território é parte fundamental da equação. Por isso, Mano Romero e a mestra Laura valorizam de maneira veemente a história dos seus antepassados que lutaram para garantir a permanência das famílias negras contra os interesses da especulação imobiliária. A lenda diz que o Quilombo do Campinho da Independência foi fundado por três mulheres. Em algumas versões, vovó Antonica, tia Marcelina e tia Maria Luiza teriam ganhado as terras de seus antigos senhores de escravos. Em outras, mais verossímeis, as matriarcas teriam permanecido na região após a abolição da escravatura e o subsequente declínio das fazendas. De todo modo, as famílias tradicionais do lugar conectam as suas linhagens ao trio original.
Durante muito tempo, o quilombo se manteve como uma comunidade praticamente autossustentável, quase autônoma em relação à cidade. A partir dos anos 1970, com a abertura da rodovia BR-101 e o consequente desenvolvimento da região, o local passou por uma enorme pressão imobiliária. Com a valorização das terras, grileiros e supostos herdeiros dos fazendeiros passaram a alegar os seus direitos e o território original do quilombo diminuiu sensivelmente. Em 1994, a Associação de Moradores do Quilombo Campinho da Independência foi fundada para batalhar pelo direito dos moradores à permanência no local em que nasceram.
Em 1999, através da articulação das lideranças locais com a então governadora Benedita da Silva, o local foi reconhecido oficialmente como o primeiro quilombo do Rio de Janeiro e um dos primeiros no Brasil. Desde então, a área de 287 hectares cercada pela Mata Atlântica e recheada de cachoeiras passou legalmente para as mãos dos nativos. Atualmente, a agricultura familiar, o artesanato em cestaria e as atividades turísticas são as principais atividades econômicas das cerca de 550 pessoas que habitam o bairro. Os moradores organizam-se em 13 núcleos familiares. Em cada um deles, a casa principal pertence ao casal mais velho, que então se cerca dos filhos e dos netos, indicando onde eles podem construir nos terrenos próximos. É por isso que, no Campinho, as casas não costumam ter muros para separar os vizinhos.
Laura e Romero garantem que ser quilombola nunca foi fácil em uma cidade que prosperou no período colonial. Durante anos, Paraty foi o porto de entrada de milhares de seres humanos escravizados que seguiam para as Minas Gerais e para as fazendas do vale do Paraíba. As heranças da escravidão, argumentam, ainda estão marcadas em boa parte da sociedade local. Para eles, o maior desafio de um quilombola no século 21 é fazer a sua voz ser ouvida de maneira cristalina por aqueles que sempre fingiram surdez.
– Ser um quilombola hoje em dia não é muito diferente do que era no período da escravidão, é bom começar por aí – opina mestra Laura. – O sentido de escravização vai mudando de acordo com os mecanismos da sociedade. A Lei Áurea foi assinada, mas não fomos reparados. Além disso, criaram mecanismos institucionais para nos impedir de avançar. A gente vai vivendo graças à nossa cultura e aos avanços políticos que a gente mesmo construiu. Se a gente não tivesse lutado pelo título em 1999, hoje essa área talvez seria chamada de favela perigosa e nós todos seríamos vistos como criminosos, como acontece em muitas periferias do Brasil.
Mateus Campos é jornalista e pesquisador paratiense. Desde 2013, publica entrevistas, artigos de opinião e reportagens sobre cultura e sociedade em diferentes veículos de comunicação impressos e digitais, como O Globo, UOL, The Intercept Brasil, Extra e Reverb. Tem mestrado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio (2020). Também colabora com a Casa da Cultura de Paraty.
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