Yuku kahtiro: o corpo vegetal

O yuku-kahtiro é um conceito que os povos indígenas do Alto Rio Negro usam para definir o “universo floresta”, pensado como um corpo vivo constituído de conjuntos de vegetais. Suas essências são elementos constitutivos do corpo humano.

 

Para os povos indígenas, a importância dos conjuntos de vegetais ultrapassa a noção dos seus benefícios biológicos, pois suas composições e suas formas de vida são dados fundamentais para “acionar”, pelo ato de bahsese, a capacidade de abrandar a dor e curar as doenças. Daí o sentido de defini-lo como yuku-kahtiro pelos especialistas indígenas do noroeste amazônico. O objetivo deste texto, portanto, é apresentar o conceito de yuku-kahtiro e sua importância como um dos elementos que constitui o corpo humano.

 

O ponto de partida é falar sobre origem de formação do ser humano, isto é, o Yepa oãku, primeiro ser antropomórfico forjado pelo Ʉmuko ñeku (“Avô do mundo”) a partir dos elementos que constituem o mundo terrestre.

 

Os especialistas do Alto Rio Negro contam que o Ʉmuko ñeku, um dos seres que desde sempre habitam o mundo primordial superior, resolveu sair da sua morada, chamada de umuse pati, para visitar o mundo primordial inferior, chamado de wamudia. Estabelecendo-se no ponto equidistante entre os dois “mundos” viu que wamudia estava sob a forma de um grande lago de lama e que sobre a lama ficava uma pequeníssima lâmina de água. Ficou observando bastante pensativo, visto que não era seu desejo encontrar um mundo dominado pela lama, mas um mundo organizado e habitável para os mahsã buharã (futuros humanos), seres iguais a ele, dotados de conhecimentos de kihti ukũse, bahsese e bahsamori.

 

Após algum tempo parado, Ʉmukoñeku tomou a decisão de “forjar” o primeiro ser antropomórfico, uma tarefa nada fácil. Fixando seu olhar nos confins do horizonte do lago de lama, avistou o ukariro sobre a lâmina de água. Ele surgia como um pequeníssimo ponto luminoso. Era a futura luz do mundo e elemento que comporia o corpo do primeiro mahsu (singular de mahsã – humano, gente). Era o boreyuse kahtiro (luz/vida). Ainda no horizonte bem distante, o demiurgo avistou sobre a lâmina da água outro pequeníssimo ponto luminoso, representando a yuku kahtiro (floresta/vida). Avistou também, nos confins do lago de lama, mais um minúsculo ponto luminoso sobre a lâmina de água, a dita kahtiro (terra/vida). Viu ainda outros três pequenos pontos luminosos: ahko kahtiro (água/vida), waikurã kahtiro (animais/ vida), ome kahtiro (ar/vida). Isso tudo estava nos confins do horizonte do grande lago de lama e da lâmina da água. Avistou, por fim, nos confins do horizonte do lago, um pequeníssimo ponto luminoso de mahsã kahtiro (humano/vida). Tudo isso é chamado de kahtise (vidas).

 

Os seis pontos luminosos eram representações de elementos que passariam a constituir o mundo terrestre e outros corpos não humanos. E o mahsã kahtiro era a representação de futuros humanos. Ele avistou tudo isso, ficou angustiado e pensativo ao se perguntar como fazer para juntar todas essas representações e formar o primeiro ser antropomórfico, capaz de dar sequência ao projeto de construção do mundo terrestre e de criar outros seres para ajudá-lo a organizar o cosmos de modo que os futuros humanos viessem a morar nesse mundo recém-construído.

 

Depois, concentrou-se e passou a lançar mão de bahsese sobre o cigarro de tabaco por longas horas. Concluindo o bahsese, soprou a fumaça do tabaco sobre a lâmina de água, fazendo com que cada kahtise se tornasse potência para constituir o corpo. Mas os pequeníssimos pontos luminosos continuaram sobre a lâmina de água do grande lago de lama, como representações dos elementos. Na sequência, pegou novamente o cigarro e fez bahsese para provocar “ondas” que pudessem juntar todas as potências e formar um único corpo. Dessa junção surgiu o primeiro ser mahsu – era o Yepa Oãku. Futuramente, ele fez surgir outros seres organizadores do cosmo, os waimahsã e os mahsã. Estes últimos povoam até hoje o mundo terrestre.

 

Em resumo, o corpo é constituído de sete elementos: boreyuse kahtiro (luz/vida), yuku kahtiro (floresta/vida), dita kahtiro (terra/vida), ahko kahtiro (água/vida), waikurã kahtiro (animais/vida), ome kahtiro (ar/vida) e mahsã kahtiro (mahsã/vida). Este último refere-se ao nome da pessoa, que é uma categoria metafísica. Ele está diretamente relacionado à qualidade humana/pessoa, “injetada” pelos especialistas logo depois do nascimento da criança, por meio do heriporã bahsese, processo que dota o corpo de mahsã kahtiro.

 

Os especialistas costumam dizer que, sem o heriporã bahseke, o corpo humano se iguala ao corpo de animais. Para sair dessa condição, é necessário que seja injetado o mahsã kahtiro. O mahsã kahtiro conecta a pessoa com outras dimensões, para além dos elementos que constituem o corpo, como o grupo social, a cosmologia do grupo, o território, a casa, a vida pós-morte, entre outros. Nesse sentido, o corpo é mais que uma síntese de elementos, é uma agência que conta com uma dimensão constitutiva e ontológica.

 

Se traduzido ao pé da letra, o yuku-kahtiro significa “vida/floresta”, isto é, corpo vegetal formado pelo conjunto de vidas vegetais existentes, detentoras de qualidades sensíveis e curativas, protetivas e de veneno, que podem ser acionadas pela ação de bahsese para cuidados de saúde.

 

O corpo vegetal é parte do corpo humano, na medida em que todas as qualidades dos vegetais estão presentes no corpo como potência. Assim, o cheiro, o amargor, o travor, a doçura, a acidez, a espessura, a textura, a plasticidade, o tamanho e a dureza dos vegetais são qualidades que podem ser acionadas e potencializadas “metaquimicamente” pelos especialistas, no ato do bahsese, para prevenir, proteger e curar as doenças, como também para atacar, provocando desconfortos e doenças.

 

Por outro lado, a potência da vegetalidade do corpo também dá origem a outros vegetais específicos, como podemos ver em dois exemplos de tempos primordiais – um, sobre a origem do vegetal especial para confecção de instrumentos musicais de sopro, chamado de miriã (jurupari), que surgiu do corpo do Bisio; e outro, sobre a origem de plantas cultiváveis do roçado, que surgiu do corpo de Bahsebo oãku.

 

O Bisio era a própria musicalidade, isto é, era fonte de “músicas”, chamadas de kahpiwaya. Dotado dessa natureza, ele vivia viajando no espaço cósmico, de casa em casa (bahsakawiseri), como na casa do Doê-wi’i (“casa de traíra”), na casa Siripituhti (“caverna de andorinha”), na casa do Osôtuhti (“caverna de morcego”), sendo mestre de festas, conduzindo as festas de poose (dabucuri), ensinando a cantar, tocar instrumentos e dançar.

 

O Bisio era bastante requisitado pelos seus pares para formar os jovens como novos especialistas. Mas via que, mesmo com todo seu esforço, seus pares nunca aprendiam. O Bisio acabou morrendo queimado pelos pais dos jovens.  Foi vingança por ele ter “matado” os formandos, ao  induzi-los a entrar no túnel do seu ânus para se protegerem do grande temporal que caía na floresta. O herói já sabia que sua morte seria pelo fogo, pois a única maneira de repassar seus conhecimentos e habilidades para seus pares era dispor de seus próprios ossos como instrumentos musicais.

 

Assim o fez, e dos seus restos mortais, isto é, dos seus ossos queimados, nasceu uma palmeira especial de pequeno porte, chamada buhpuño (paxiubinha). Dessa palmeira, os especialistas indígenas passaram a confeccionar os instrumentos musicais de miriã, como se estivessem se apropriando do próprio corpo de Bisio como fonte da musicalidade.

 

Outro exemplo é a origem das plantas cultiváveis do roçado, sobretudo, a planta maniwa. Segundo os especialistas, a maniwa surgiu do corpo de Bahsebo oãku. Aconteceu que Bahsebo oãku decidiu sair do Alto Rio Negro e viajar rio abaixo, após o conflito com seu filho, que o desprezava por causa da idade. No percurso, encontrou a família (pai e filhas) de Wariro, que morava numa serra na atual cidade de São Gabriel da Cachoeira. Wariro não conhecia a técnica de fazer roçado, nem possuía mandioca e muito menos dominava o processo de extração de seus produtos. Sabendo da viagem do Bahsebo oãku, detentor de maniwa, ordenou que as suas filhas o seduzissem.

 

As moças cumpriram a orientação do pai. Na descida pelo rio, o herói foi seduzido pelas lindas mulheres e logo passou a morar na casa do “sogro”. Convivendo no seio de sua nova “família” percebeu que o Wariro era carente de conhecimentos sobre a planta maniwa e sobre técnicas de extração de seus derivados, produtos essenciais para a alimentação e a qualidade de vida.

 

Privado de boas qualidades de alimentos, Bahsebo oãku se viu na obrigação de ensinar para suas noivas a melhor maneira de obter e produzir alimentos. Para isso teve que tomar uma atitude: como ele era a própria potência de maniwa e de plantas cultiváveis, viu que teria que passar pelo fogo para poder dispor os alimentos para suas noivas. Primeiro fez a derrubada do roçado, esperou secar, e, durante o preparo para a queimada, transformou-se no bastão, chamado de yagu, uma representação de todas as potências de plantas cultiváveis. Se colocou no centro do roçado para a queima. Quando cessou o fogo, as sementes eclodiram, provocando um grande estrondo. Dessa maneira, o corpo do Bahsebo oãku deu origem às plantas de maniwa e plantas cultiváveis do roçado.

 

A noção de transformacionismo do corpo tem suas raízes no tempo dos seres que protagonizaram a construção e a organização do mundo terrestre. Na concepção nativa, como visto, o corpo, em especial o corpo humano, constituído de sete elementos, é capaz de se transformar em qualquer desses elementos constitutivos: água, ar, luz, vegetal, animal e terra (minerais).

 

Segundo os kumuã, o corpo humano é uma combinação de elementos feita sob medida. O seu desequilíbrio é entendido como consequência do desequilíbrio dos elementos. Através de bahsese, os especialistas fazem a equalização para manter o equilíbrio das substâncias, de modo a evitar que o “metabolismo” cause o desequilíbrio do corpo, que pode se manifestar como desconfortos ou doenças.

 

O conceito do corpo vegetal é que permite aos especialistas intervirem sobre o corpo. Através de bahsese, são acionadas as qualidades curativas – contidas nos vegetais, nos animais e nos minerais –, os fenômenos naturais e as plantas medicinais para abrandar as dores, curar as doenças e dar proteção à pessoa.

 

Dessa maneira, para além da estrutura física visível aos olhos, o conceito de corpo constituído de elementos etéreos ou imateriais que nele gravitam é importantíssimo, pois é a fundamentação que possibilita acionar “metaquimicamente” as qualidades dos vegetais pela articulação de bahsese para prática de cuidado de saúde e cura de doenças.

 

Todos os elementos etéreos que constituem o corpo são chamados de kahtise (vidas), como “anatomia” do corpo, e são essenciais para o bom funcionamento e para o equilíbrio da pessoa.

 

Pensar e teorizar sobre o corpo a partir de seu sentido para os povos indígenas do Alto Rio Negro traz à tona a necessidade de identificar como se dá a construção do saber sobre o corpo e como este saber implica diretamente a prática de produção de cuidado do corpo para ter boa qualidade de vida e cuidado nas relações com as coisas do seu entorno.

 

O corpo é um microcosmo conectado com o cosmo maior. Segundo os especialistas indígenas, qualquer corpo está conectado no corpo mundo terrestre, e seus elementos constitutivos se cruzam e se afetam mutuamente, formando novos corpos que se encontram. Os especialistas falam da transformação criadora e definem o mundo terrestre como organismo vivo, um sistema que tem como atributo essencial a autoprodução. Os seres se fazem e refazem por meio das conexões que cada corpo estabelece com outros corpos. O corpo vegetal é uma parte do todo.

 

João Paulo Lima Barreto é indígena do povo Yepamahsã (Tukano), nascido na aldeia São Domingos, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Professor e consultor, é graduado em filosofia e doutor em antropologia social pela Universidade Federal do Amazonas, além de pesquisador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI). Fundou o Centro de Medicina Indígena Bahserikowi e é membro do SPA – Science Panel for the Amazon (Painel Científico para a Amazônia) – e da Academia Brasileira de Ciência. Também integra o Comitê Científico SoU_Ciência e a OTCA – Organización del Tratado de Cooperación Amazônica e é coordenador do Fórum Povos da Rede Unida.

 

Notas


1 Os bahsese são um vasto repertório de fórmulas, palavras e expressões especiais retiradas dos kihti ukũse (narrativas míticas) e proferidas formalmente pelos especialistas Pamurimahsã e Ʉmukorimahsã. É uma prática de articular verbalmente as qualidades curativas, preventivas e protetivas contidas nos vegetais e nos animais. Bahsese também é limpeza e “descontaminação” dos alimentos, tornando-os próprios para o consumo humano (João Paulo Lima Barreto et al. OMERÕ. Constituição e circulação de conhecimentos Yepamahsã (Tukano). Manaus: EDUA, 2018, p. 64).

2 Kihti ukũse é o conjunto das narrativas míticas dos Yepamahsã (Tukano). Essas narrativas tratam das aventuras e das tramas vividas pelos demiurgos e por outros personagens e heróis responsáveis pela origem e pela organização do mundo, da humanidade, dos seres, das coisas, das técnicas. O kihti ukũse fala de um tempo em que os humanos ainda não existiam, de um tempo em que o mundo era habitado apenas pelos waimahsã. Assim, podemos dizer que o kihti ukũse trata dos waimahsã demiurgos e organizadores do mundo terrestre. No kihti ukũse encontramos as lições, as regras, as obrigações, a origem das doenças e dos bahsese, as etiquetas e os comportamentos exigidos nas relações entre os humanos e destes com os não humanos, especialmente com os waimahsã. Além disso, a leitura e a interpretação do kihti ukũse nos permite entender a origem e a dinâmica das relações entre os diferentes povos da região rionegrina, seus grupos e suas comunidades (João Paulo Lima Barreto et al. OMERÕ, op. cit., p. 26-27).

3 O conceito de bahsamori aqui empregado diz respeito ao conjunto de práticas sociais associadas aos marcadores naturais, doenças, atividades agrícolas, coleta e bahsese; à interação com os waimahsã, instrumentos musicais, contos, danças e coreografias; às pinturas corporais, etiquetas, peeru (caxiri), kahpi e formação de especialistas. Mais especificamente, bahsamori diz respeito ao conjunto das festas e cerimônias rituais de oferta (poose) e compreende conhecimentos e práticas relacionados à música, à coreografia, aos instrumentos musicais, dentre outros. Essas festas e cerimônias são organizadas ao longo do ciclo anual, de acordo com um complexo calendário astronômico estruturado pela passagem das constelações, que orienta também as atividades anuais e cotidianas da roça, a construção das armadilhas de pesca e caça e várias outras atividades ligadas às experiências da vida cotidiana (João Paulo Lima Barreto et al. OMERÕ, op. cit., p. 119).

4 É uma palavra da língua Dessana em termos de bahsese para se referir ao ponto luminoso, que também é chamado de pehkame, isto é, fogo representativo de um tipo de kahtise.

5 João Paulo Lima Barreto. Kumuã na kahtiroti-ukuse: uma “teoria” sobre o corpo e o conhecimento-prático dos especialistas indígenas do Alto Rio Negro. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2021.

6 Gabriel Sodré Maia. Bahsamori: o tempo, as estações e as etiquetas sociais dos Yepamahsã (Tukano). Manaus: EDUA, 2018. (Coleção Reflexividades Indígenas).

7 João Paulo Lima Barreto et al. OMERÕ, op. cit., p. 34.

 

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